Já faz duas semanas que Esquadrão Suicida estreou no Brasil, e esse pequeno tempo de remoção do calor da discussão já nos dá distância o bastante para que passemos a pensar em uma coisa: e agora, DC? Com o sucesso de bilheteria garantido (já são mais de US$500 milhões) e a “guerra” entre críticos e fãs continuando a rolar solta, o universo cinematográfico da editora segue sendo um campo de contestação e disputa – e cada um parece ter uma opinião sobre isso.
Oscar Wilde disse uma vez que, quando as reações divergem, geralmente é porque o artista está em consonância consigo mesmo. O brasileiro Nelson Rodrigues traduziu para um português mais claro: toda unanimidade é burra. Parte do fascínio do universo DC nesses três primeiros anos (e filmes) é a forma como ele dividiu as pessoas, e há muito que se refletir sobre o que essa divisão significa para a relação do público atual com a crítica e a radicalização das paixões geeks espalhadas para o mundo do cinema. A verdade é que nenhum lado está certo – críticos não sabem como avaliar cultura pop sob os parâmetros corretos, e fãs xiitas não sabem lidar com discordâncias de opinião.
O problema dessa radicalização, dessa metafórica “divisão do Mar Vermelho”, é que ela esquenta tanto os ânimos que ninguém de fato parece parar para tentar entender o que a Warner e a DC estão tentando fazer com seu universo midiático. Falta calma, pensamento em profundidade, inquisição sobre a intenção artística e não sobre a reação ao produto final. Precisamos falar mais sobre esses filmes do que sobre as críticas que são levantadas a eles – afinal, assim como o universo Marvel, os filmes da DC são parte essencial da cultura pop do século XXI, e como tal servem como espelho e molde social.
O que a Olhar Geek quer dizer é que talvez, só talvez, nessa confusão toda até mesmo os fãs da DC (e eu me conto entre eles desde a infância, diga-se de passagem, visto que fui criado lendo as HQs de ambas as grandes editoras) acabam deixando de respirar e tentar compreender o que a editora – agora estúdio – está fazendo. Como um espaço de reflexão sobre cultura pop, me parece que cabe à coluna prover esse momento, por mais pessoal que ele possa ser, visto que é escrita sob o ponto de vista de apenas um fã em um milhão. Sua perspectiva, caro leitor, é mais do que bem-vinda nos comentários.
O mito do herói
Durante uma entrevista recente, a produtora Deborah Snyder, também esposa do diretor Zack Snyder, defendeu a criticada versão do Homem de Aço montada pelo marido tanto no filme solo do herói quanto em Batman vs Superman. “Eu não acho que ele é sombrio. Zack adora a questão da jornada do herói, e eu sempre digo que, se você não consegue se relacionar com os poderes de um super-herói, porque é claro que não consegue, então você se relaciona com a sua jornada”, disse ela na oportunidade. Ela está absolutamente certa – e é por isso as críticas frequentemente levantadas ao universo DC por ser “sombrio demais”, mesmo por alguns fãs, não se sustentam.
Mito do herói ou jornada do herói é aquele modelo de narrativa à qual todas as subsequentes abordagens de figuras míticas (sejam deuses, super-heróis ou Jesus) prescrevem, e há algo de quase misticamente duradouro e fascinante nele. “Quase” misticamente porque na realidade a perduração do mito do herói é muito logicamente explicável: a possibilidade de um salvador todo-poderoso não só nos é atraente por seu apelo de fantasia, como abre espaço para explorações interessantes da nossa relação com o simbolismo, a esperança e a humanidade das nossas figuras de autoridade.
A visão de Zack Snyder do Superman é a de um homem falho, brigando com os conceitos de bem e mal – um herói contemporâneo que não prescreve às noções de um maniqueísmo que só funcionava, mesmo, quando o mundo era dividido entre “mocinhos” (americanos) e os “bandidos” da vez (nazistas, comunistas, vietcongues, etc). É um tremendo favor que o cineasta nos fez, durante esses dois filmes, criando um Superman crível, em pleno processo de amadurecimento, que aprende o custo humano e material de manter em segurança um planeta que, no fundo, ele ainda ama. O Homem de Aço de Henry Cavill é um garoto aprendendo que jogar com a caixa de brinquedos poderosa que lhe foi dada não é algo a se fazer sem consequências, e é maravilhoso ver isso em um filme de alcance tão enorme quanto os da DC.
Mais do que ser uma narrativa mais interessante (e mais contemporânea) do que seria com um Superman solar e confortável em sua posição de salvador – sem contar um público que estivesse também acomodado à aceita-lo nessa posição –, a narrativa de Snyder e dos roteiristas David S. Goyer e Chris Terrio carrega uma mensagem e tanto nas entrelinhas: mesmo com as melhores das intenções, ter poder sobre o destino dos outros não é brincadeira, e requer uma maturidade e um conforto com decisões difíceis que ninguém está totalmente capacitado para ter. “Você sabe qual é a mentira mais antiga da América, senadora? É a que diz que o poder pode ser inocente”, é a frase repetida por Lex Luthor. A parte mais aterrorizante, e relevante, do universo DC até agora, é que ele está certo.
Batman vs Superman: Um filme de horror
Luthor diz isso, é claro, em Batman vs Superman. Uma extravagância cinematográfica com visual, ambição narrativa e caracterização de personagens inchadas e monumentais, o segundo filme de Snyder é talvez um pouco a mais do que seu próprio diretor é capaz de lidar, mas isso não tira suas virtudes. Por dois terços de sua metragem de três horas (na versão estendida), Batman vs Superman é um filme de horror com direito a delírios assustadores, alegorias militaristas, um Homem Morcego amargurado e violento, e uma visão cínica de mundo – nem mesmo no jornalismo o filme de Snyder confia, com a atitude “o idealismo está morto” de Perry White (Laurence Fisburne) contaminando a trama.
O filme é também falho, não há como negar. Como disse anteriormente, ele é um pouco demais para seu próprio diretor – Snyder é um artista visual espetacular, criando imagens inesquecíveis, e a trilha-sonora, em um mundo justo, seria candidata forte ao Oscar 2017, mas o cineasta não é contador de histórias o bastante para conduzir a trama que é posta a sua frente com todas as nuances e simbolismos que ela pede. Na versão estendida, o plano absurdamente mirabolante (e que largamente depende de casualidades não planejadas) de Lex Luthor fica ainda mais claro, e a “reviravolta” no final da disputa entre os dois heróis parece ainda menos desenvolvida – aquela mesmo, do infame “Martha”.
A verdade é que Batman vs Superman era um equilíbrio impossível, um jogo de malabarismo entre uma ambição artística gigantesca e outra, comercial, ainda maior. Dentro desses parâmetros, Snyder fez um trabalho de gênio, que segurou o filme em seus muitos pedaços com uma poderosa cola de coesão visual, e a colaboração de Chris Terrio fez muito para ajudar a narrativa de David S. Goyer a ganhar estilo, densidade e coerência. Os críticos não deveriam ter sido tão duros com Batman vs Superman, mas a bronca não é com a DC – ansiosos para encontrar um filme comercial que pudesse servir “de Cristo” para a noção de que blockbusters não merecem credibilidade artística, muitos jornalistas se deixaram levar na onda e escolheram o alvo errado.
Historicamente, a instituição da crítica tem uma implicância com o cinema pop por não compreendê-lo nos parâmetros que ele pede para ser compreendido. Acostumados com a dieta de cinema indie e francês, muitos (mas vale absolutamente ressaltar, não todos!) não conseguem enxergar mérito em uma narrativa de ação contemporânea que use e abuse dos recursos digitais do cinema moderno e mesmo assim ambicione claramente ser algo além de diversão passageira. Os filmes da Marvel se escondem por trás dessa pretensão de “apenas entretenimento” mesmo quando tem discursos ricos e fundamentais nas entrelinhas, e os da DC (pelo menos até agora) não se sentiram na necessidade de fazer o mesmo – e é aí que entra a nossa preocupação.
As próximas edições
Com a má recepção tanto dos fãs quanto dos críticos para O Homem de Aço, Batman vs Superman e Esquadrão Suicida, a Warner parece ter desistido de manter sua imagem de estúdio “que coloca a visão do diretor em primeiro lugar”. Tirou boa parte do controle das mãos de Zack Snyder e montou um sistema que, querendo ou não, é bem parecido com o da Marvel, com um executivo (Jon Berg) e um quadrinista (Geoff Johns) no comando do que passou a ser chamado DC Filmes. A administração centralizada deve fazer bem ao universo DC em um nível superficial e especialmente mercadológico (de padronização do produto), mas será que artisticamente ela faz sentido?
Ao assumir, Geoff Johns já deu sua primeira entrevista dizendo que quer reintroduzir “esperança e otimismo” ao universo DC – e embora a reclamação por mais humor que surgiu após os três primeiros filmes não seja exatamente infundada (e só parcialmente satisfeita, em alguns casos até forçadamente, por Esquadrão Suicida), otimismo não parece exatamente ser a palavra de ordem que a DC definiu até o momento. A abordagem de Johns em seu papel no universo televisivo da editora funcionou porque ele esteve lá desde a concepção – mudar de trajeto no meio do caminho pode ser um pouco mais complicado.
E veja bem, o que estamos dizendo não é que queremos um universo DC sem humor. O filme da Mulher-Maravilha promete ser excepcional porque incorpora o senso de afeição e gentileza da heroína em uma história que a coloca no meio de um cenário de guerra, e mesmo assim encontra momentos para diálogos bem-humorados (basta dar uma olhada no trailer). A pequena prévia da Liga da Justiça parece ser, em todos os sentidos, uma evolução do que vimos até agora de Snyder, mantendo o acúmen visual do diretor enquanto introduz essas novas personalidades heroicas em um mundo pós-Superman. Por enquanto, o universo DC faz muito sentido.
E embora Esquadrão Suicida não seja nem a sombra do filme que Batman vs Superman corajosamente tentou ser, ainda é um estranho passeio de montanha-russa, que sofre de síndrome de mau vilão mas consegue superá-la ao construir seus personagens principais com cuidado e coloca-los em ótimas interpretações (descontando, talvez, o Diablo de Jay Hernandez). A Arlequina é uma revelação porque Margot Robbie transcende o pouco que o roteiro lhe provém e faz esquecer a retrógrada objetificação da sexualidade da personagem, e o Coringa de Leto, embora não seja pessoalmente minha versão ideal do vilão, traz uma interpretação convincente.
Questionando de forma mais veemente ainda o papel de heróis e vilões no mundo da DC, que vem se tornando uma contestação maravilhosa do status quo dos filmes de quadrinhos e da fascinação social com figuras “salvadoras”, Esquadrão Suicida se encaixa perfeitamente em um universo fascinante e fundamental para quem quer entender as formas como a cultura pop reflete o nosso momento social. O universo cinematográfico da DC quer nos dizer algo muito importante – só nos resta escolher se queremos escutar.
A Olhar Geek retorna no dia 02 de setembro.