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OMG! #7 | Uma (nem tão) breve história do sexo gay no cinema e na TV

High Maintenance é o nome da nova série da HBO, tirada direto de uma websérie de sucesso já há quatro anos, que acompanha as aventuras diárias de um entregador de maconha que, a cada episódio, visita e se entranha na vida de um cliente diferente. É mais uma antologia para a multidão que vem se multiplicando na TV americana (só algumas das que estão por vir: Dimension 404, Contos da Cripta, Feud, etc).

O primeiríssimo capítulo de High Maintenance, recentemente exibido para os críticos, tem duas ou três coisinhas que chamaram a atenção: primeiro, a participação de Bob the Drag Queen, vencedora da última edição do RuPaul’s Drag Race; segundo, Colby Keller, um dos maiores astros do pornô gay, no elenco; terceiro, cenas homoeróticas explícitas.

A série vai ao ar no dia 16 de setembro com o tal episódio de estreia, intitulado “Meth(od)”, um trocadilho com o seu personagem principal, um jovem garoto que se mete em um romance perigoso com um homem viciado em metanfetamina (interpretado por Keller). As relações sexuais entre os dois rapazes são mostradas em toda a sua glória e a sua ambiguidade narrativa, casando a agressão com a afeição e o prazer sem nunca deixar de lado a discussão sobre o vício em suas mais variadas vertentes. É sexo servindo como elemento narrativo, da forma como serve em uma multidão de séries e filmes por aí, com aquela diferença básica – dessa vez, é sexo entre dois homens.

Bob the Drag Queen (à esquerda) e Colby Keller (direita) em High Maintenance

E quando eu digo que sexo é usado para fins narrativos, é óbvio que ele existe também de forma gratuita. Game of Thrones, para citar apenas a série mais popular do mundo hoje em dia, encapsula ambos os exemplos: as muitas cenas de sexo e nudez (largamente femininas, diga-se, mas essa é outra história para um outro texto) às vezes parecem ser inseridas para “cumprir a cota” que permite à HBO continuar vendendo seu maior produto como “a série mais adulta e ousada da televisão”; em alguns momentos selecionados, no entanto, sexo faz parte da narrativa – notadamente, no primeiro momento em que vemos Jamie e Cersei na torre de Winterfell, lá no primeiro episódio, mas também quando vemos Jon Snow com Ygritte na caverna ou Grand Maester Pycelle com a prostituta da vez, revelando que sua aparência frágil é enganação.

Quando o assunto é sexo gay, no entanto, a discussão muda de figura não só porque sua presença na nossa cultura pop é drasticamente inferior, mas também porque o contexto em que ele é inserido, e a reação que ele provoca, é radicalmente diferente da provocada pelo coito heterossexual. Tendemos a tratar cenas de sexo gay com mais escrutínio (o histórico momento de Liberdade, Liberdade, da Globo, mostrou muito bem isso em terras brasileiras), e isso não é necessariamente ruim, desde que o alvo do nosso olhar vigilante não seja a moralidade do sexo, e sim da narrativa. Pessoas heterossexuais no cinema e na TV fazem sexo com e sem compromisso, sexo selvagem e sexo afetuoso, sexo bom e sexo constrangedor – pessoas homossexuais também passam por todo esse espectro na vida real, e precisam se ver representados na mídia.

Os meninos de Memórias de Um Espião (1984)

Dois passos para frente…

Casais gays são parte da história de Hollywood desde pelo menos os anos 40 ou 50, se você contar o óbvio casal homossexual de Festim Diabólico (1948), de Alfred Hitchcock, por exemplo. Sexo gay, no entanto, seguiu sendo um tabu até os anos do pós-Código e pós-Stonewall, no qual a censura em Hollywood afrouxou e o movimento LGBT ganhou espaço não só no cinema como em todas as áreas da sociedade. Memórias de Um Espião (1984) usa o pretexto de contar a história de um infame espião universitário inglês para na verdade explorar a relação entre dois rapazes em um internato só para meninos: Guy Bennett (Rupert Everett) e James Harcourt (Cary Elwes).

Em algumas cenas espalhadas pelo elogiadíssimo filme do diretor Marek Kanievska, podemos ver os dois protagonistas em breves encontros sexuais, especialmente um interrompido por um dos professores do internato, o que leva ao trágico final da história. Não vamos nos estender no fato de que Memórias de Um Espião perpetua um padrão de narrativa em que a realização de qualquer desejo homossexual precisa necessariamente vir com uma punição rápida e brutal – é um clichê venenoso e inaceitável que é largamente utilizado até hoje (The 100 que o diga). Memórias de Um Espião é histórico por colocar o sexo gay pela primeira vez em uma plataforma onde pudesse ser visto e discutido, e não podemos tirá-lo esse mérito.

Gordon Warnecke e Daniel Day-Lewis em Minha Adorável Lavanderia (1985)

Durante os anos 80, mais produções de prestígio seguiram mostrando relações homossexuais, com progressiva ousadia e tocando em assuntos delicados que fazem parte da sexualidade gay tanto quanto fazem da heterossexual – Minha Adorável Lavanderia (1985), Buddies (1985, primeiro filme a falar sobre AIDS), Olhares de Despedida (1986), Maurice (1987), A Lei do Desejo (1987), O Amor Não Tem Sexo (1987). São obras importantes para entender que o cinema de liberdade revolucionária que Hollywood famosamente tocou entre os anos 70 e 80, com a ascensão de Martin Scorsese, Francis For Coppola e companhia limitada, não tinha medo também de tocar na sexualidade de seus personagens gays e não trata-la como algum tipo de tabu ou “apresentação especial”.

Infelizmente, medo e estigma vieram logo em seguida, com a emergência da AIDS e o pânico generalizado que tomou conta de um mundo pouco informado que logo nomeou a doença como a “praga gay” (se você ainda pensa assim hoje em dia, sinceramente, como conseguiu ler até aqui?). Só dois filmes com distribuição comercial notável tiveram personagens gays durante os anos 90 – o excelente Filadélfia (1993), com Tom Hanks; e Meu Querido Companheiro (feito em 1989 e lançado em 1990), uma crônica devastadora da vida de vários homens gays durante a epidemia da AIDS.

Heath Ledger e Jake Gyllenhaal em O Segredo de Brokeback Mountain (2005)

Coube a produções independentes como The Living End (1992), de Gregg Araki, mostrar a vivência do homem gay durante a epidemia do HIV com fidelidade e o sentimento de ira e desespero que desprendia de uma comunidade ignorada e injustamente temida naquele momento histórico. Três Formas de Amar (1994) trouxe um moderno, intenso e picante relacionamento bissexual entre dois rapazes e uma moça – um deles Josh Charles, o futuro Will de The Good Wife. Já o britânico Delicada Atração (1996) trouxe um retrato honesto do relacionamento (romântico e sexual) entre dois jovens de classe trabalhadora na Inglaterra.

Os exemplos de cenas de sexo gay nos anos 2000 são igualmente mais abundantes e mais proeminentes, então é possível questionar se de fato vale a pena discutí-los. Filmes como O Segredo de Brokeback Mountain (2005) trazem o erotismo homossexual para o centro do palco de Hollywood porque abordam-no com a mesma “refinação” e “classe” que se espera de histórias heterossexuais no cinema de prestígio ditado pela Academia. Com o cinema independente explodindo de criatividade, no entanto, retratos mais autênticos, realistas e complexos aparecem – como Weekend (2011), de Andrew Haigh, que usa o sexo como forma de ilustrar e conduzir a complexa trama do encontro entre seus dois protagonistas. Haigh mais tarde criaria Looking, da HBO, mas quando falamos de TV (como de costume) é outra história.

Billy Crystal como Jodie Dallas em Soap

ABC do sexo gay

That Certain Summer, um filme para TV de 1972 estrelado por Martin Sheen e Hal Holbrook, é considerado por muitos a primeira abordagem positiva da homossexualidade na televisão americana. A inclusão aparece dez anos depois de Tempestade Sobre Washington (1962), primeiro filme do circuito mainstream a ter um personagem abertamente gay que tem sua sexualidade discutida e confirmada dentro do filme. Cinco anos depois do telefilme, a ABC estreava Soap, uma muito adorada sitcom que durou quatro temporadas e tinha no personagem de Billy Crystal, Jodie Dallas, o primeiro personagem regular abertamente homossexual em uma série de TV.

Faz quase 40 anos, portanto, que personagens gays estão na TV. O primeiro beijo homossexual na TV aberta americana, no entanto, aconteceu só em 1991, entre duas mulheres, em um episódio da série de advocacia L.A. Law. Os passos extraordinariamente lentos dão a ideia de uma indústria muito diferente da do cinema – quando se trata de TV, não só a mídia é pelo menos 50 anos mais nova, como o envolvimento público e, portanto, a discussão sobre o pioneirismo social, é muito mais intensa.

Queer as Folk e The L Word

A televisão como meio de comunicação em massa é obviamente mais poderosa que o cinema, e mostrar sexo gay para essa fatia enorme do público americano foi um tabu para todo mundo (conservadores e liberais). Isso até pelo menos 2000, quando a febre do HIV como “epidemia gay” havia acalmado, e a sempre sexualmente ousada Showtime entrou no jogo com a adaptação americana de Queer as Folk, uma das mais polêmicas e marcantes séries de TV de todos os tempos para o público gay. Quatro anos mais tarde, The L Word, também da Showtime, incluiria a comunidade lésbica nessa roda de narrativas que usavam o sexo como maneira de discutir questões particulares e importantes do movimento LGBT.

Ambas as séries eram permeadas de cenas de sexo, e seu reinado entre 2000 (quando Queer as Folk começou) e 2007 (quando The L Word acabou) marca o começo de uma evolução de representação LGBT na TV americana que não tem precedente nem mesmo no cinema. Noah’s Arc (primeira série focando exclusivamente em homens gays negros), The Wire, Six Feet Under, Dante’s Cove e alguns outros títulos abordaram relações gays e sexo homossexual na TV a cabo americana ainda nessa época, mas a TV aberta precisou de um tempo para chegar na festa – o que aconteceu, acreditem ou não, com Plantão Médico.

A já famosa cena de How to Get Away with Murder

Em 2006, no oitavo episódio da 13ª temporada da série, intitulado “Reason to Believe”, a série médica mais popular da história da TV americana mostrou o Dr. Gregory Pratt (Mekhi Phifer) chegando em casa e encontrando seu irmão Chaz (Sam Jones III) e um amigo em uma franca situação sexual durante o banho. Na ABC, Brothers & Sisters e até a antiga thirtysomething flertaram com a representação sexual de seus personagens gays (em pleno 1989, thirtysomething mostrou um momento pós-sexo de um casal gay na cama), mas só Plantão Médico teve a coragem de mostrar dois homens gays em uma situação sexual tão explícita quanto os limites da TV aberta permitem para os casais heterossexuais.

Como no cinema, hoje vivemos em uma era em que a sexualidade LGBT é mais explorada tanto na TV a cabo quanto na aberta (basta olhar para How to Get Away with Murder, não por coincidência também da ABC). Looking nos fez voltar a discutir AIDS, relacionamentos abertos e fechados, o dilema do passivo/ativo, o impasse da diferença de idade e mais alguns tabus na TV. Sense8, na Netflix, desfila sua sexualidade exacerbada e seu conceito de panssexualidade ou bissexualidade universal sem todo o alarde que se faria em outras épocas. Kingdom coloca um dos maiores astros da cultura pop mundial (Nick Jonas) em várias cenas de homoerotismo – e por aí vai. Num ambiente vasto como o da televisão hoje em dia, em plena era de Peak TV, ainda nos vemos muito pouco, mas numa perspectiva histórica é uma conquista enorme.

Sensualidade não falta em Sense8

Atenção dobrada

É justamente essa abundância de representação da sexualidade LGBT no cinema e na TV que faz com que a nossa vigia precise ser redobrada. Não só vale militar por mais representatividade, como é preciso fiscalizar a qualidade da que já estamos recebendo – o tratamento da sexualidade gay na narrativa contemporânea procura retratar as particularidades únicas e questões exclusivas do nosso envolvimento íntimo a partir das mesmas regas e diretivas que aplica ao sexo heterossexual, e isso pode ser tão positivo quanto negativo. Positivo, é claro, porque levanta a noção de que o sexo gay não deve ser tratado como um tabu maior que o heterossexual, o incluindo na discussão maior sobre “devemos mostrar sexo na TV? Se sim, quando e de que forma? Ele é importante para a narrativa?”.

Por outro lado, nossa sexualidade não é a mesma dos casais héteros. Looking, por todas as suas falhas, mostrava isso com excelência ímpar – seus personagens, quando lidavam com situações sexuais, agiam a partir de conhecimentos e vivências que eram diferentes das que teriam personagens héteros. Por outro lado, a “série-irmã” de Looking, Girls, costuma colocar as cenas de sexo do seu personagem gay mais destacado, Elijah (o maravilhoso Andrew Rannells), no mesmo contexto em que coloca as cenas envolvendo as meninas protagonistas e seus parceiros homens – isso cria uma paridade interessante que mostra que a experiência sexual pode ser desajeitada, constrangedora e sensual para ambos.

Esse delicado equilíbrio, em muitos sentidos, reflete a experiência de inclusão que tivemos em outras áreas e a discussão social que se concentra na questão da sexualidade. Somos iguais, mas somos diferentes? É um conceito que muita gente luta para entender, e isso gera discursos unilaterais que não contemplam a complexidade da nossa humanidade – só dizer “somos todos iguais”, seja em uma campanha publicitária ou na forma como você trata a sua narrativa televisiva e/ou cinematográfica, é uma forma de união tanto quanto é de apagamento da identidade única do outro, além de reforçar uma ideia de que, se fôssemos diferentes (como somos), não mereceríamos ser tratados com respeito.

Precisamos celebrar e aceitar a identidade sexual alheia sem precisar equalizá-la com a nossa. Não é fácil – mas se fosse, não tínhamos demorado tanto para chegar onde chegamos. Colby Keller e Bob the Drag Queen, lá da vindoura série High Maintenance, que o digam.

Veja 10 cenas quentes de sexo gay das séries americanas

A OMG! retorna dia 20 de setembro.

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