Essa é a primeira edição do Olhar Geek, uma coluna semanal (toda quarta-feira!) em que vamos falar de assuntos relacionados à comunidade nerd. Espere um tempinho e com certeza a sua série, saga ou super-herói favorito provavelmente vai acabar aparecendo por aqui – essa semana, no entanto, a gente resolveu falar de um assunto que vem provocando polêmica por aí: o reboot de Caça-Fantasmas.
As duas coisas que você deve ter ouvido recentemente sobre esse filme em particular não foram exatamente positivas – primeiro, o trailer do remake que substituí o time original por um rol de talentosas comediantes femininas se tornou um dos vídeos mais “disliked” (ou seja, que recebeu voto negativo) do Youtube – veja aqui; segundo, o diretor Paul Feig, responsável por comédias maravilhosas como Missão Madrinha de Casamento e A Espiã Que Sabia de Menos, se envolveu em uma disputa com o jornal New York Daily News, que publicou uma frase sua dizendo que “a cultura geek é a casa de alguns dos maiores ‘babacas’ que já conheci”.
Diretor pede desculpas por comentários negativos sobre a cultura geek
Desde então, essas duas coisas foram um pouco contestadas, então vamos lá: o trailer de Caça-Fantasmas, que conta um total de 771.916 dislikes no momento em que escrevemos esse artigo, ganhou esse número de desafetos em um total de 31 milhões e meio de visualizações (também número do momento em que digitamos essas linhas) – proporcionalmente, é um número poderoso, mas não chega perto dos vídeos mais odiados da plataforma, como o clipe de “Baby”, do cantor Justin Bieber, que tem mais de 6 milhões de dislikes. O número de visualizações dá conta que a fama de “mais odiado do Youtube” não só está trazendo mais atenção para Caça-Fantasmas, como provavelmente não vai prejudicar o resultado financeiro do filme.
Já a polêmica envolvendo Feig, que se relaciona mais ao tema da nossa coluna, foi corrigida pelo próprio New York Daily News, que adicionou uma nota no início de seu artigo confessando que as citações eram de uma entrevista dada por ele em 2015, pouco depois de anunciar o seu projeto de refilmagem, como promoção para um livro que Feig escreveu sobre “a cultura nerd”. Portanto, Feig não disse aquelas coisas exatamente sobre a reação contrária a Caça-Fantasmas, mas as disse mesmo assim – para adereçar a polêmica, o diretor foi ao Twitter e esclareceu: ele considera os “bullies” e “babacas” da comunidade geek uma minoria que vive largamente na internet, e acha que os “verdadeiros geeks” não podem deixar que essas pessoas tomem conta de uma comunidade tão importante justamente para os socialmente excluídos. E quer saber? Ele está certo.
Mas desgostar do trailer é ser machista?
Não necessariamente, mas a campanha contra o filme, contra a escalação das atrizes, o tipo de difamação que se lê facilmente nos comentários do vídeo no Youtube, os ataques ao talento e à aparência delas, tudo isso é sim muito machista. E a quantidade pura de dislikes se comparada com os comentários que pendem para esse teor mostram que a ideia de um time de Caça-Fantasmas feminino, a ideia de que comediantes mulheres podem ser engraçadas, a ideia de que elas podem interpretar heroínas e carregar um filme de verão dirigido à comunidade nerd sozinhas, tudo isso incomoda uma minoria vocal e escandalosa (para usar um termo que eles adoram colocar às mulheres), o que é no mínimo perturbador.
E aquela história da misoginia na cultura geek passa muito longe de se restringir apenas à reação ao trailer de Caça-Fantasmas, é claro. A internet não é e nunca foi um local em que mulheres, em posição de poder ou não, podem se expressar de forma segura – o relato de uma jornalista em especial (leia aqui) mostra que a perseguição na internet contra as mulheres é mais frequentemente pessoal e motivada pelo gênero do que ideológica ou qualquer coisa do tipo. Mas se a internet não é um local seguro, os recantos geeks da rede também não tem se esforçado para ser.
Quando o discurso não é que quadrinhos, vídeo games e determinadas sagas ou franquias são “coisas de homem”, e que, portanto, as moças deveriam ser simplesmente banidas, a argumentação vira que as mulheres que adentram no mundo geek estão “fazendo pose” ou são “falsas nerds”. Não faltam posts, memes e imagens fazendo graça da estereotípica adolescente interessada em coisas consideradas “tradicionalmente masculinas”, e isso inclui marcas indeléveis da cultura geek, como Star Wars, quadrinhos de super-heróis, sagas de fantasia ou filmes cult como Os Caça-Fantasmas e De Volta Para o Futuro.
Esse sentimento de “propriedade” que o público masculino sente com determinadas marcas do mundo geek só não é ultrapassado porque nunca foi realmente verdadeiro. Mulheres interessadas e valiosas para a cultura geek sempre existiram, e a voz que elas levantam agora, tomando conta do protagonismo em franquias como Mad Max, Star Wars e, agora, Caça-Fantasmas, deveria mostrar que estamos em um tempo em que essas mulheres não devem e não podem mais ser relegadas ao papel de coadjuvante, ou de interesse amoroso do herói da vez. Vale notar, no entanto, que a escalação de protagonistas femininas em cada uma das três franquias citadas nesse parágrafo foi recebida com protestos de dentro da comunidade geek.
Feig e suas atrizes já se pronunciaram sobre as mensagens abusivas e grosseiras que receberam quando anunciaram que estariam a bordo de Caça-Fantasmas. A ideia de uma protagonista feminina em Star Wars (e de um Stromtrooper negro, inclusive) provocou propostas de boicote ao filme. Mad Max: Estrada da Fúria provocou a ira de alguns “fãs” que declararam o filme “misândrico” e evocaram seus direitos “masculinistas” para criticá-lo.
Inadvertidamente, esses membros e outros da comunidade geek, os próprios Immortan Joe’s do nosso presente, provaram o ponto do filme, e renderam uma reputação péssima a um grupo que deveria ser acolhedor para todas as minorias e oprimidos – porque pode ser que sejamos populares e cool no momento, mas a comunidade nerd, tradicionalmente, é a comunidade dos rejeitados, ainda que, infelizmente, a nossa ficção hoje reflita mais isso que a nossa realidade.
Como voltar para o caminho certo?
Assim como Paul Feig, nós queremos acreditar que é uma minoria da comunidade geek que orquestra e reforça esses ataques misóginos a franquias e propriedades nerds que ousam fazer algum avanço no sentido de incluir personagens femininas e proposições feministas. Nós devemos, e provavelmente sempre vamos dever, igualdade às mulheres – o abismo que existe entre os dois gêneros historicamente não é facilmente fechado, mas a ideia aqui é não protestar quando os criadores que permitimos entrar em nossa mitologia tentam diminui-lo um pouquinho.
Se você ama Os Caça-Fantasmas original, assistiu ao trailer da refilmagem, e não gostou, vale pensar no por que você não gostou. Melissa McCarthy, Kate McKinnon, Leslie Jones e Kristen Wiig formam um quarteto poderoso de talentos cômicos – juntas, contam 16 indicações ao Emmy e, no caso de Wiig e McCarthy, duas ao Oscar. Você realmente acha que essas mulheres não são engraçadas, mesmo tendo assistido A Espiã que Sabia de Menos, Mike & Molly, as últimas temporadas do Saturday Night Live, Missão Madrinha de Casamento e mais um rol de comédias dos últimos anos? Se sim, a ideia é perceber que o humor delas funciona para muita gente, mesmo que não funcione para você.
Ou talvez o seu problema com o trailer seja a qualidade dos efeitos especiais, da trama, dos personagens, o que quer de defeito que você tenha encontrado ali. Talvez você só não queira que o clássico da sua infância seja tocado. Se esse é o caso, há dois pensamentos importantes: primeiro, quem edita e organiza trailers não são cineastas, atores ou roteiristas, e sim produtores e executivos, menos interessados em passar a verdade do filme e mais interessados em transformá-lo no produto mais vendável possível dentro de seus parâmetros muitas vezes enganados; segundo, prezar a “pureza” do original não só é uma atitude fútil na Hollywood de hoje em dia como, em muitos casos, acaba sendo uma atitude equivocada.
Trazer uma propriedade para uma nova geração pode ser positivo, especialmente se, como Caça-Fantasmas fez, houver a distorção de algumas convenções que, hoje em dia, parecem um pouco questionáveis no original. Por que o time original dos Caça-Fantasmas não tinha nenhuma mulher? Talvez por que mulheres comediantes eram ainda menos apreciadas na época, e, portanto, os atores cômicos mais disponíveis e celebrados para o projeto fossem homens – pois o jogo virou, e a atual geração de comediantes femininas está dando uma surra nos rapazes, comercial e criticamente falando.
Antes de se juntar às legiões de “fãs” que estão massacrando o trailer do filme de Feig, vale pensar com quem você está se alinhando e por que. Essas são as pessoas que se opõem a um filme solo da Viúva Negra porque “ela só funciona bem como coadjuvante”; que se enfurecem com as mulheres questionando a sexualização da Arlequina e porque a tradição de sexualização exacerbada das personagens femininas herdada dos quadrinhos precisa continuar nos filmes; que expulsam, abusam e insultam mulheres que “ousarem” adentrar espaços tradicionalmente masculinos na cultura nerd, como jogos de RPG; que só aceitam cosplay feminino se vier com uma verve “sexy” e se encaixar em certo padrão de beleza.
A ideia não é radical, e ninguém deveria se sentir a própria Madre Teresa de Calcutá por praticá-la: receba bem as mulheres que estão tomando protagonismo e moldando a forma como vemos a cultura geek daqui para frente. Celebre sua inclusão e incentive sua criatividade através do simples ato de não espalhar ódio, insultos e comentários derrogatórios. Isso não significa que tudo o que elas fizerem será excelente, mas significa que é importante que elas sejam parte da discussão, parte da produção criativa, parte dessa comunidade que tem um potencial enorme de inclusão e diversidade.
E se é justamente com isso que você não concorda, então eu tenho péssimas notícias: não só Paul Feig está certo sobre machismo, “bullies” e “babacas” na comunidade geek, como ele está certo especificamente sobre você.
O Olhar Geek volta na quarta-feira que vem (18), para falar sobre filosofia e a profundidade da mitologia dos X-Men.