De repente um filme como A Tartaruga Vermelha começa a figurar numa lista ao lado de grandes blockbusters da animação. A indicação ao Oscar coloca a singela e pequena produção dos estúdios Ghiblis lado a lado com longas como Moana e Zootopia, parecendo de imediato um corpo totalmente estranho nessa pequena lista de cinco indicados.
Felizmente essa categoria do Oscar culturalmente abre espaço para filmes bastante experimentais, tal visibilidade confere ao público geral a possibilidade de ver tais filmes nas salas de cinema, assim como deve ser visto, é o caso não só de A Tartaruga Vermelha, mas também da bela animação franco-suíça Minha Vida de Abobrinha. Quem ganha com isso é realmente o espectador.
Realmente A Tartaruga Vermelha é um corpo estranho em muitos os sentidos, o primeiro filme de um diretor holandês (Michael Dudok de Wit), realizado pelo estúdio Ghibli, sem nenhum diálogo e em desenho animado 2d da forma mais tradicional. Todavia, o longa não é fora dos padrões apenas nesses aspectos, A Tartaruga Vermelha é um estrangeiro até mesmo na sua maneira de lidar com as imagens que representa e com a narrativa que retrata.
A sinopse do filme poderia ser definida em uma simples linha, A Tartaruga Vermelha conta a história de um homem que naufraga numa ilha deserta ganhando a companhia de uma tartaruga, que de repente se transforma numa mulher que vive como companheira daquele protagonista. E seria extremamente restritivo definir o filme através desse story line.
O primeiro equívoco se daria pela crença de que o longa se constrói através do fantástico, como se essa transformação ou esse relacionamento ocorresse por meio da fantasia, da narração surreal ou coisa que o valha. Quando na verdade essa relação se dá muito mais num plano simbólico, as personagens tratam aquilo como uma normalidade não por crer na fantasia da ficção, mas por estarem num filme onde as ações são representações e não fatos propriamente ditos.
Essa é a chave para o outro equívoco possível numa má interpretação da sinopse redigida linhas a cima. O que de fato valida A Tartaruga Vermelha não é sua narrativa em si, mas esse caráter simbólico contido em todo o longa. A animação não é aquele tipo de filme que se expande pelo seu roteiro, que traz discussões ou aprofundamentos por aquilo que está contido em cada linha de seu roteiro. Pelo contrário, sua expansão se dá pela sua incompletude, as imagens e os sons – seja sua trilha musical ou na ambiência daquela ilha perdida – são uma espécie de portas, signos que contém chaves para um mundo metafórico e não narrativo.
Cada ação vista em cena, cada personagem apresentado ou cada transição concebida carrega consigo esse poder simbólico. A Tartaruga Vermelha é no melhor dos sentidos um filme incompleto, longa que não se entrega, em que as imagens colocam o espectador à prova, sendo este desafiado a dar significado aquilo que vê. Nesse mar de significações o filme vai dando suas dicas, construindo-se a partir de arquétipos e simbologias que conduzem seu público a essa experiência de completude a partir do incompleto.
A Tartaruga Vermelha carrega consigo muito de uma noção de um ciclo natural a ser respeitado, trajetórias impostas pela natureza biológica e do próprio homem em que todos são obrigados a passar. O náufrago do filme é colocado na situação extrema desse momento, à mercê da natureza virgem, o homem também está em seu estado mais puro. A lógica é usufruir daquilo que se dá e arcar com aquilo que se deve, ou seja, com o ciclo natural das coisas.
O protagonista de A Tartaruga Vermelha vive num ambiente em que não há maquinarias ou aparatos que tentem por algum meio vencer ou ultrapassar o natural. Há ali um peso nesse trajeto imposto pela vida, muito bem representado pelas diversas tentativas em vão de fuga daquele local. Ali, o náufrago há de respeitar os ciclos, há de esperar o amadurecer das frutas para poder comê-las, há de olhar os pequenos ciclos – um animal que devora outro, que acabar de se alimentar de outra espécie – para compreender sua própria narrativa.
Nesses movimentos entre e o máximo e o mínimo, A Tartaruga Vermelha é um filme poético, em que seu fluxo simbólico propõe essa expansão de sentidos. A poesia que está presente tanto em seus significados quanto em suas formas, que percorrem tanto a sutileza da simplicidade dos traços dessa animação, quanto a exuberância de sua paleta de cores, característica essa que faz questão de ressaltar os ciclos de um dia – a claridade do nascer do sol, a intensidade da luz e das cores ao mesmo dia, e a melancolia alaranjada do final do dia, do fim do ciclo. Há ao longo de todo filme essa noção de estar diante de um registro poético, em que cada pequeno detalhe abre portas para a representações e significados.
Na sua dimensão muito mais simbólica do que narrativa, A Tartaruga Vermelha esbanja poesia, sensações e significados vêm à tona para as telas através da pureza cinematográfica, vem através da imagem, da edição, da trilha instrumental, sem precisar de uma fala se quer ou de algum subtexto escancarado por um roteiro. O que dizer das sequências que se passam à noite, e na total desaturação do longa, a ilha/o filme torna-se preto e branco, retratando uma vulnerabilidade da homem naquela escuridão presente naquele lugar selvagem, tal ação visualizada a partir de processos cinematográfico abre margem na narrativa simbólica do filme para divagações do inconsciente, os devaneios que surgem para explicitar ou propor novas relações metafóricas e simbólicas. É nessa circunstância que uma tartaruga vira mulher, que um homem pode voar para um infinito e é ali que o ciclo de A Tartaruga Vermelha fica tão visível.
Esse corpo totalmente estranho na atual conjuntura de um filme de animação, ou até mesmo de um circuito que aposta quase que exclusivamente a um cinema massivamente narrativo e realista faz com que o espectador dê um passo para trás. A Tartaruga Vermelha no seu ritmo poético e lírico propõe a incompletude, coloca em cena imagens não para o agora, mas que proporcionam uma viagem por caminhos em busca de significado. A Tartaruga Vermelha comprova como pode ser gratificante ficar à deriva diante de uma experiência fílmica.