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Crítica | Hebe: A Estrela do Brasil

Nota-se desde o princípio que Hebe: A Estrela do Brasil não será uma cinebiografia qualquer dentro de nosso vasto catálogo no gênero. Não só pela especificidade da figura de Hebe Camargo, e nem pelo fato de efetuar um recorte sobre a história da apresentadora, focando no momento definidor de sua carreira. Mas mais importante ainda e talvez o que realmente o eleve, pela fluidez temática que percorre boa parte de sua duração. Se em filmes como Simonal ou Chacrinha os diferentes tópicos se interrompiam e não ganhavam corpo dentro de uma estrutura esquemática, aqui há pelo menos quatro temáticas que correm em paralelo e terminam, felizmente, desenvolvidas.

Este retrato de Hebe Camargo (Andréa Beltrão) opta, antes de tudo, por mostrá-la como uma implacável negociadora. Pressionada a deixar o camarim para conduzir um programa fora dos seus conformes, a apresentadora lá reside em silêncio até que Walter Clark (Danilo Grangheia), diretor-geral da Rede Bandeirantes na época, cede ao pedido de Camargo para incluir um convidado drag na transmissão. Em uma cena paralela a isso, Clark acalma um dos chefes da censura acerca de outro episódio polêmico, indicando a frequência com que deve “limpar” o nome de Hebe. Aqui, são as mulheres que jogam as cartas, enquanto os homens lidam – e são – os efeitos colaterais.

O jogo de Hebe dentro das emissoras e contra a censura é o que mais toma conta dos atos introdutórios, como um pedaço fascinante de história sendo retratada no ponto de vista dos bastidores – o filme se assume como “uma obra de ficção livremente inspirada na vida de Hebe Camargo, mas todos os pontos se conectam de forma que criem verossimilhança. Mais do que Bingo: O Rei das Manhãs, tem-se uma representação metódica e suficientemente detalhada dos trâmites envolvidos na produção de um programa ao vivo, no modelo da TV aberta. Ao invés de pular aos episódios icônicos, o filme de Maurício Farias apresenta diversos passos da pré-produção dos programas.

Entre estas etapas está, notoriamente, o processo de transição entre a Rede Bandeirantes para o SBT, período que na maioria das vezes intimida grandes apresentadores a “renovarem” suas identidades. Apesar de um pouco mais conveniente do que a realidade, a Hebe de Beltrão chega ao SBT em pé de guerra para manter seu brilho característico e, mais do que tudo, a liberdade para abordar temas que naquele período eram tabu – e que hoje, infelizmente, continuam assim. Sem soar demasiadamente como rasgação de seda – ou vestido de lantejoulas vermelhas -, a roteirista Carolina Kotscho vê a protagonista como desestabilizadora de sistemas, e uma batata quente lucrativa para as emissoras.

Além do roteiro de Kotscho, que acerta em definir núcleos narrativos – incluindo um familiar – e dar a todos eles um arco, são essenciais dois aspectos para o funcionamento desta abordagem recortada: a direção de Maurício Farias e, é claro, o trabalho de Andréa Beltrão. Farias, cujos trabalhos mais populares incluem Vai Que Dá Certo e A Grande Família: O Filme, aqui apresenta um amadurecimento como cineasta ao não seguir simplesmente a cartilha funcional de Bingo. Quase à moda de um Sebastian Lelio (Uma Mulher Fantástica, Gloria Bell), Farias externa com sucesso o imaginário e por vezes as instabilidades psicológicas da protagonista tanto na encenação, quanto nos posicionamentos e movimentações de câmera.

Na fotografia de Inti Briones (do ótimo Planeta Solitário), Farias encontra a estética adequada para este tipo de abordagem intimista e conduzida por personagem. Além de capturar a textura específica dos 35mm e uma coloração de menor fidelidade, algo que pode ser visto como limitação tecnológica mas que acrescenta veracidade, Briones evoca a todo momento o brilho de que Hebe tanto fala. Coloque joias, vestidos e sets cintilantes em frente a um painel de refletores, e os lens flares são inevitáveis. Mesmo uma viagem de carro noturna, sob um túnel cheio de luzes incandescentes frias, acaba ornada por estes feixes brilhantes, como se a presença da protagonista definisse a aura dos espaços.

Debaixo deste estilo todo, que já possui substância própria, há um bocado a mais dela, e grande parte é enriquecida pelo desempenho de Beltrão no papel principal. No que pode soar como caricatura para alguns, com o jeito mais do que correto de falar e a maneira como se refere a outras personagens – Hebe repete o nome de Walter Clark sempre por extenso -, existe na verdade uma personagem própria, criada pela atriz com inspiração na apresentadora. O fato de chamá-la de personagem indica, de certa forma, a vantagem que Hebe: A Estrela do Brasil possui em termos de construção, já que tantas cinebiografias resumem seus homenageados a nomes e fantasias.

Da mesma forma que Vladimir Brichta interpretou Arlindo Barreto, criando novas particularidades sob outro nome, e Ícaro Silva encarnou Skunk do Planet Hemp sem muitos materiais de apoio à disposição, Beltrão mira na essência e na maneira como o público vê a apresentadora sob o filtro da memória afetiva. Fiel ou não à realidade, atriz e espectador tomam a liberdade de imaginar a melhor versão de Hebe para o bem do filme, que nada mais é que uma peça de narrativa. Nada muito diferente do que a protagonista busca: criar uma narrativa favorável para os homossexuais, travestis, performers e, nas palavras dela, “os excluídos”.

No fim do dia, é o fato de ter uma narrativa igualmente clara que torna Hebe: A Estrela do Brasil tão cativante, embora não apresente nada de exatamente novo. Alguns podem vê-lo como mais uma cinebiografia nacional entre tantas, já que soa muito como elas, e isso é compreensível. Mas dentro de nossa safra atual, o filme de Maurício Farias acaba destacando-se mais pelo que faz bem, e não o contrário, o que em si já aponta seu valor como entretenimento. Nem tudo são trunfos, como a abordagem da AIDS ou o desenvolvimento da figura do filho Marcelo (Caio Horowicz), no entanto são detalhes que acabam abrilhantados pelo todo.

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