Sweet Tooth, uma aclamada série da Netflix, imagina um mundo onde híbridos entre animais e humanos são reais. Essa ideia é representada pelos fofíssimos bebês que dominaram o marketing da produção. Embora esse conceito seja caracterizado com uma boa dose de realismo fantástico na série, experimentos relacionados ao hibridismo na vida real ainda são marcados por polêmicas e controvérsias.
Embora os bebês peludinhos de Sweet Tooth sejam quimeras da vida real – organismo que contém dois tipos de DNA – eles não são necessariamente híbridos, de acordo com Insoo Hyun, o diretor do departamento de ética de pesquisa na Escola de Medicina da Universidade de Harvard.
“Um híbrido é criado quando você combina o esperma e o óvulo de duas espécies diferentes”, afirmou o especialista em uma entrevista ao site Insider.
Se um cientista fertilizar um óvulo animal com esperma humano (ou vice-versa), o processo resultaria em um híbrido. Essas criaturas têm um DNA “misturado” das duas espécies em cada célula do corpo.
A mula, por exemplo, é um híbrido entre um burro macho e uma égua, a fêmea do cavalo.
As criaturas de Sweet Tooth – Quimeras ou híbridos?
As quimeras, por outro lado, não possuem o DNA misturado em todas as células. Elas são, na verdade, organismos nos quais as células vêm de pelo menos dois zigotos (óvulos fertilizados) diferentes. Essas células, por sua vez, podem vir da mesma espécie ou de espécies diferentes.
Embora esse processo possa acontecer naturalmente, as quimeras que causam polêmica na mídia são produzidas em laboratório. Cientistas criam quimeras por diversas razões diferentes, como estudos sobre transplantes de órgãos ou tratamento de doenças.
Esses cientistas, no entanto, não estão “brincando de Deus”. A pesquisa acontece por razões médicas legítimas, não para criar híbridos como os vistos em Sweet Tooth.
Hiromitsu Nakauchi, o líder do time de pesquisa da Universidade de Tóquio, afirma que o objetivo dos estudos atuais é cultivar células humanas em embriões de animais, com a intenção de melhorar a segurança dos transplantes de órgãos e evitar a rejeição nos transplantados.
“O principal foco da nossa pesquisa não é criar animais quiméricos, mas utilizar o desenvolvimento ambiental dos animais para criar órgãos para transplante a partir das células tronco dos pacientes”, comenta Nakauchi.
Doadores de órgãos são escassos no mundo inteiro, e mesmo quem consegue receber o transplante, normalmente precisa tomar remédios imunossupressores pelo resto da vida. A criação de órgãos humanos em embriões de animais, com o uso das células tronco, pode acabar com esses problemas de uma vez por todas.
Embora a equipe de Nakauchi tenha conseguido grande sucesso na criação de quimeras de ratos e camundongos, a pesquisa de quimeras mais complexas é um verdadeiro desafio.
“Como a distância genética entre humanos e animais é bem mais longa do que a entre ratos e camundongos, ainda é difícil criar esse tipo de quimera. Ainda não chegamos ao estágio da produção de órgãos humanos”, explica o cientista.
A polêmica das quimeras
Mas afinal de contas, por que as quimeras de humanos e animais (bem diferentes dos bebês de Sweet Tooth) ainda não vistas com tanto receio pela sociedade?
Nos Estados Unidos, embriões animais com células-tronco de humanos já chegaram a ser criados, mas não puderam chegar ao estágio final da pesquisa por “razões éticas”.
Um pesquisador do Instituto Salk, da Califórnia, causou grande controvérsia ao publicar um estudo sobre quimeras entre humanos e macacos no início de 2021. A equipe justificou a criação dos organismos pela possibilidade de entender melhor a progressão de doenças degenerativas em humanos.
Segundo Tetsuya Ishii, um especialista em legislação científica da Universidade de Hokkaido, a criação de quimeras levanta três dilemas éticos importantes.
O primeiro envolve o bem estar dos animais. Muita gente se opõe a qualquer experimento científico que possa causar riscos ou maltratar as cobaias.
O segundo dilema é relacionado à possível criação de uma “espécie ambígua”, que alteraria os limites entre humanos e animais.
“Como nós trataremos, legalmente e socialmente, uma quimera com um cérebro humano ou capacidade cognitiva humana?”, questiona Ishii.
Já o terceiro dilema aborda principalmente a dignidade humana. Se um espermatozóide humano fertilizar o óvulo de um macaco, por exemplo, isso resultaria em bebês macacos com células humanas? Ou bebês humanos com células de macaco? Então, como a sociedade poderia definir quem é e quem não é humano?
Os Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados Unidos colocaram diversos limites e restrições ao financiamento público das pesquisas de quimeras, especialmente nas que podem causar mudanças neurológicas nos cérebros animais.
A restrição envolve uma das possibilidades mais temidas pelos cientistas: a criação de quimeras superinteligentes. Mas não tema: Hiromitsu Nakauchi garante que isso nunca deve acontecer.
“A maioria das pessoas associa quimera com monstros, ou teme a produção de porcos inteligentes, por exemplo. Mas não precisamos nos preocupar com isso. As células tronco utilizadas por nós são modificadas para não se transformarem em terminações nervosas”, explica o cientista.
A primeira temporada de Sweet Tooth já está disponível na Netflix. A produção também foi renovada para um segundo ano.