Alguns especialistas dizem que com cinco minutos de filme, já podemos dizer o tipo de obra que estamos assistindo, e se o material em questão é de qualidade ou não. Bem longe de fazer disto uma regra, até porque soa mais como um capricho de um suposto conforto ególatra, mas existe algo útil neste pensamento.
À parte esta pressa em tentar definir qualquer coisa que for, muitas vezes não precisamos de mais que cinco minutos assistindo um filme para saber em que tipo de terreno estamos pisando. Se acredita que o material tem algum valor é uma outra discussão. O que está em evidência aqui é a capacidade de um cineasta em pouco tempo “avisar” seu público que tipo de mundo está presenciando à sua frente.
Bom, levando-se tal regrinha em consideração, deve-se afirmar de peito cheio que a estreante Rebecca Hall não precisou das cinco voltas do ponteiro fino do relógio: bastou apenas uma volta!
Identidade, novo drama preto-e-branco da Netflix é um trabalho surpreendente no melhor dos sentidos, pois em pouco menos de cem minutos conseguiu narrar uma história culturalmente relevante de um modo onde podemos facilmente identificar todas as emoções evocadas lindamente pela dupla de protagonistas Tessa Thompson e Ruth Negga, que brilham como o Sol neste enredo sobre raça e desejo.
A paciente Rebecca Hall nos introduz duas amigas de infância mestiças que se reúnem na vida adulta de classe média, envolvendo-se cada vez mais com a vida uma da outra. Enquanto Irene (Tessa Thompson) se identifica como afro-americana, casada com um médico negro; Clare (Ruth Negga) “se passa” por uma mulher branca, casando-se com um homem branco, rico e preconceituoso. Esta convivência entre as duas começa a desestruturar alguns aspectos da vida de ambas.
A força do subtexto
Dentre tantas qualidades a serem exaltadas por esta obra dirigida por Rebecca Hall, talvez a mais sutil e impressionante delas seja a valorização consciente do que o subtexto pode proporcionar à narrativa em destaque.
Ainda nos primeiros minutos de Identidade, observamos uma aflita Irene tentando pegar um táxi na ideia de encontrar qualquer estabelecimento que possa lhe acolher, mesmo porque segundos antes testemunhou um homem desmaiar na calçada tamanho o calor que fazia naquele dia. Neste breve momento, percebemos Hall revelando a angústia de uma mulher negra a passeio em uma área da cidade que não lhe é habitual.
São por estas vias que a debutante cineasta escolhe nos contar o que chamam de ‘passing’, que ocorre quando uma pessoa classificada como membro de um grupo racial é aceita ou percebida (“aprovada”) como membro de outro. Historicamente, o termo tem sido usado principalmente nos Estados Unidos para descrever uma pessoa de cor ou de ascendência multirracial que se incorporou à maioria branca para escapar das convenções legais e sociais de segregação e discriminação racial.
Entre o preto e o branco, tons de cinza
Outro acerto em cheio da diretora foi usar o preto-e-branco na produção Netflix. Especialmente por “brincar” com a paleta de cores que este tipo de filmagem proporciona, onde o preto mais escuro e o branco mais iluminado representam apenas os extremos da técnica, que transita por tonalidades cinzas que evocam o estado sentimental de sua dupla de protagonistas.
É tecnicamente um trabalho admirável feito pelo diretor de fotografia Eduard Grau (Direito de Amar; As Sufragistas; O Caminho de Volta), que vai modulando as cenas em Identidade de acordo com os eventos decorrentes, sempre iluminando ou sombreando enquanto mudanças acontecem.
Ao fazer esta escolha Rebecca Hall mostra compreender perfeitamente que a Nova York dos anos 1920 e o nosso mundo atual repetem os mesmos padrões. Pelos olhares da cineasta, o preto-e-branco serve para indicar o espaço cinzento de dúvidas e agonia da população negra, que geralmente é marcada em determinadas colunas por terceiros, apenas existindo sem nunca pertencer.
Sobre raça e desejo
As ambições de Rebecca Hall – que sempre se mostrou uma atriz habilidosa – são audaciosas. Uma vez que ela poderia muito bem deixar sua obra, exclusivamente como uma discussão sobre raça nos Estados Unidos. Mas, não. Ela vai mais fundo!
Ao mesmo tempo, insere na relação de suas protagonistas: uma boa dose de desejo.
E, não pensem ser aquele do tipo carnal, que é naturalmente mais momentâneo do que emocional. Em Identidade temos duas mulheres desejando o que a outra têm, aquilo em falta nas suas vidas cotidianas.
Lembrando da dura realidade, que para a comunidade negra querer algo a mais na vida, sempre é mais difícil. Em muitos casos, terminando em tragédia.