Da formação inicial dos Vingadores no Universo Cinematográfico Marvel (MCU) apenas Clint Barton (Jeremy Renner), o Gavião Arqueiro, ainda não havia ganhado uma história para ser chamada de sua. Não vem como grande surpresa, portanto, a série própria do personagem no Disney+, ainda que ela não seja somente dele, visto que divide o holofote com Kate Bishop (Hailee Steinfeld).
De fato, o foco dividido com Bishop fica claro já nos minutos iniciais do primeiro episódio, que traz um belo retorno aos primórdios do MCU. Aqui vemos a brevíssima história de origem da garota, que entrega uma motivação convincente para ela iniciar o treinamento na arquearia (além de artes marciais, parkour e tudo o que ela tem direito).
Infelizmente, desde já, o grande problema desse capítulo inicial fica claro: não há muito que convença o espectador a efetivamente se importar com o que está se passando em tela. Afinal, não tivemos tempo o suficiente para nos importarmos com os personagens secundários, visto o ritmo apressado, que imprime considerável artificialidade a tudo que estamos assistindo.
No fim, a sensação é de estarmos vermos um “resumão” da história, um trailer esticadíssimo. Com isso em mente, fica claro que esse trecho inicial da origem de Kate Bishop funcionaria melhor caso fosse apresentado em formato de flashback, algo como vimos em Batman Begins. Isso contribuiria para a narrativa do episódio como um todo, que se apressa nessas seções cruciais de desenvolvimento de personagens, mas gasta mais tempo do que deveria nas sequências de ação, como se estivesse querendo o tempo todo pular diretamente para elas.
Curiosamente, desse começo da história de Kate Bishop, o que funciona melhor são os créditos de abertura, que resume o treinamento dela, com arte claramente inspirada nos excelentes quadrinhos do Gavião Arqueiro por Matt Fraction e David Aja, que também servem como principal fonte de inspiração da série do Disney+ como um todo, É um trecho curto, resumido, mas não há muita necessidade em vermos como ela aprendeu as coisas que sabe nesse momento, simplesmente precisamos saber o porquê dela ter seguido por esse caminho.
Mas, como dito antes, Bishop é apenas um dos lados da moeda aqui. Ela é a força-motriz da história, ao passo que a problemática central está mais ligada à ela (ao menos por enquanto), todavia não podemos desconsiderar a importância de Clint Barton. O Gavião Arqueiro é introduzido em mais uma inteligente e hilária referência aos filmes da Marvel, enquanto passa o fim do ano com os filhos em Nova York.
Assim como os problemas do lado de Kate Bishop ficam claros desde o início, os do lado de Barton também são evidenciados bem cedo e há um nome por trás deles: Jeremy Renner. No primeiro episódio da série, o ator parece estar totalmente em piloto automático, incapaz de passar qualquer emoção por meio das expressões faciais (ou falta delas), ou pela voz. Renner parece tão cansado quanto o personagem e a artificialidade gerada pela mencionada pressa da narrativa aumenta ainda mais. Não que estejamos falando de um grande ator, ou até mesmo de alguém muito carismático, mas ele certamente consegue entregar mais que isso – um pouco ao menos.
Não ajuda o fato de que, quando enfim chegamos às sequências de ação, elas sejam pessimamente coreografadas e dirigidas. O diretor Rhys Thomas nitidamente não se sente à vontade nesses momentos e além da decupagem repleta de cortes (dois ou mais planos para os movimentos mais simples, como um chute), conseguimos enxergar que, na maior parte das vezes, os atores sequer encostam uns nos outros. O resultado parece uma infindável trocas de bofetões de comédias slapstick sem graça. Não há urgência ou até mesmo qualquer valor de entretenimento.
Dando a volta por cima
A situação melhora drasticamente quando chegamos ao segundo episódio de Gavião Arqueiro. A mudança é da água para o vinho em quase todos os aspectos, como se Jeremy Renner e toda a equipe (exceto Steinfeld, que brilha desde os primeiros momentos) tivessem encontrado a motivação para fazer essa série funcionar.
Mas há um motivo claro por trás da melhoria da narrativa: o relacionamento entre Kate Bishop e Clint Barton. Do instante que se encontram, o seriado da Marvel assume tons de buddy cop, como o ótimo Dois Caras Legais, de Shane Black. O entusiasmo da personagem de Hailee Steinfeld perfeitamente contrasta com o lado mais ranzinza do herói de Renner, que finalmente consegue exprimir emoções.
Além disso, o fato de agora estarem juntos faz a transição entre os dois pontos de vista funcionar melhor, tendo em vista que as subtramas se complementam e não apenas apresentam um ponto de convergência iminente. Até mesmo a comédia acerta mais em cheio, com toques ácidos, que brincam com a história do Gavião Arqueiro até aqui, ironizando sem minimizar tudo pelo que o personagem passou.
É preciso notar, também, como o figurino contribui para a construção do humor, ao mesmo tempo que se enquadra com o que a trama desenvolve e com a personalidade dos personagens, o que certamente não é algo fácil de se fazer. Podemos enxergar quem é Bishop por meio do que ela veste de maneira evidente, mesmo que algumas das roupas não sejam dela.
E por falar em comédia, o capítulo entrega um dos melhores momentos de Clint Barton em todo o MCU, que mesmo a evidente falta de contato físico das lutas (sim, isso permanece no segundo episódio) não consegue estragar. É o tipo de sequência que se encaixa como uma luva com o aspecto mais pé no chão do seriado, que, até agora, não envolve super-vilões, ameaças alienígenas, viagem no tempo, magia, ou qualquer coisa que um ser humano que simplesmente dispara flechas obviamente não conseguiria lidar.
Aqui preciso abrir um adendo para mencionar as séries da Marvel na Netflix. É extremamente satisfatório o simples fato de Gavião Arqueiro mencionar diretamente outros eventos e heróis do MCU, ao mesmo tempo que mantém essa história mais ligada às ruas, ao crime “comum”, sem ameaças intergalácticas. Isso é algo que não víamos em Demolidor, Jessica Jones, Luke Cage ou Punho de Ferro, que, no máximo, inseriam uma referência escondida aqui e ali aos filmes dos Vingadores.
Todo o humor da série, felizmente, não minimiza a crescente sensação de ameaça que é construída, especialmente nesse segundo capítulo. Grande parte do mérito vai para Tony Dalton (o Lalo de Better Call Saul) como Jack Duquesne. É óbvio que ele é um dos antagonistas da série desde a primeira aparição dele, mas há um tom de incerteza que permeia o personagem, ocasionado pelo fato de não sabermos exatamente o que ele busca, ou sequer se ele é uma ameaça direta para Kate e Clint. Isso funciona para a construção da atmosfera da série como um todo: como na realidade, o antagonista não precisa fazer atos de vilania o tempo todo.
Dito isso, por mais pé no chão que seja, no entanto, é preciso daquela velha suspensão de descrença em diversos momentos. Seja por conta de algumas inexplicáveis trocas de figurinos, com uniformes que surgem do nada, cachorro que come só pizza e não passa mal, ou pelo simples fato de alguém ter o Gavião Arqueiro como o membro preferido dos Vingadores, dentre outras questões pontuais.
Um bom começo
Esses pontos, todavia, não prejudicam a experiência como um todo, como é o caso dos problemas apontados anteriormente envolvendo atuação, direção e roteiro.
Mesmo esses não transformam essa dupla de episódios iniciais de Gavião Arqueiro em uma tragédia, já que o segundo capítulo mais que consegue melhorar significativamente nossa percepção do seriado do Disney+.
Em suma, a série da Marvel nos deixa com um gosto de quero mais na boca, a relação entre Kate Bishop e Jeremy Renner é promissora e parece haver bastante espaço para o desenvolvimento do MCU como um todo – dessa vez sem supervilões à espreita (esperamos). Gavião Arqueiro tropeça nos primeiros trechos, mas já demonstra que pode melhorar muito.
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