Quando Spike Jonze nos presenteou com o ótimo romance dramático/sci-fi Ela (2013), observamos uma grande porção do público profundamente impactado e movido pelo material em uma história sobre um homem solitário que se apaixona pela inteligência artificial que conversa com ele através do pequenino aparelho que carrega consigo todo o tempo.
O trabalho de Jonze levantou muitas questões relevantes que por um tempo foram discutidas em algumas mesas-redondas cinéfilas mundo afora, porém, uma parte menor de pessoas, apesar de valorizar os feitos da obra, viu Ela mais como uma obra de terror. Sim, é exatamente isso o que leu! Terror!
Tal argumento dispõe de boa base, já que analisamos que não apenas o protagonista da trama, mas tantos e mais tantos também adotaram este novo tipo de relacionamento amoroso em suas vidas particulares, abstendo-se da busca pela conexão humana em todas as frentes: emocional, mental, carnal, espiritual, e assim por diante.
Para este grupo que viu mais terror que drama romântico, testemunhar uma sociedade em sua maior parte deliberadamente entregue às relações tecnológicas, inclusive romances com tamanho ímpeto e disposição, foi algo decididamente assustador.
Ainda assim, podemos admirar o trabalho de Spike Jonze que no final nos deixa com aquela questão sem resposta objetiva, como toda ficção científica deveria fazer, que diz – “O que realmente significa ou explica o que é ser humano?”
Igualmente veremos o gracioso e competente O Homem Ideal, produção escolhida como representante alemã para a próxima edição do Oscar, ir pelo mesmo caminho de questionar nossa própria humanidade diante um avanço tecnológico que espanta e encanta na mesma proporção.
Dirigido por Maria Schrader, que anteriormente trabalhou na minissérie Nada Ortodoxa (disponível no catálogo da Netflix), temos a história de vida de Alma (Maren Eggert), que para conseguir obter fundos para sua pesquisa, é persuadida a participar de um estudo extraordinário. Por três semanas, ela é obrigada a viver com Tom (Dan Stevens), um robô humanóide projetado para ser o parceiro de vida perfeito para ela, feito sob medida para seu caráter e necessidades. No entanto, nem tudo serão flores na rotina doméstica deste casal muito incomum. Será que a relação tem algum futuro?
Humanos Vs. Inteligência artificial
Facilmente notamos que O Homem Ideal de Maria Schrader mira algo mais jocoso do que romântico pelo fio narrativo, isso claro, sem nunca perder a intenção reflexiva que costuma vir acompanhada de produções deste estilo.
Contudo, o mais atraente dessa história é o fato de termos uma estrutura clássica de comédia romântica hollywoodiana fazendo o meio por onde torna possível tamanha imersão emocional e psicológica a respeito dos acontecimentos que vão se desenrolando pela trama.
Apesar da temática que discute a relação entre seres humanos e máquinas geralmente aparecer vez ou outra para o público, sendo que na maioria dos casos ainda trazem os mesmos pontos filosóficos, é mais do que justo elogiar O Homem Ideal por ousar ser um pouco mais provocativo em seus questionamentos, desafiando mais nossa própria perspectiva ou até mesmo nossas práticas humanas no dia a dia.
É bem simbólica a cena onde a protagonista, que se encontra desolada naquele momento, observa um pedestre se revoltar com um motorista que está com o carro emparelhado ao dela, para depois encará-la e xingá-la de alguns nomes chulos, também.
Enquanto algumas ficções científicas costumam incitar uma maior valorização de nossas qualidades como seres vivos racionais, percebemos que pela história de Maria Schrader acontece exatamente o contrário, no caso, um olhar para a tecnologia como uma possível versão 2.0 de nós mesmos. Um ‘upgrade’ que não fomos capazes de desenvolver naturalmente.
O melhor Dan Stevens
Dos predicados encontrados em O Homem Ideal, definitivamente, exaltamos com mais facilidade o par de atores que estrela este “romance”. Maren Eggert e Dan Stevens são o coração e cérebro desta produção alemã.
Ela, uma arqueóloga cínica e solitária, ainda presa ao passado (literalmente e figurativamente); enquanto ele, uma inteligência artificial de aparência humana que se desenvolve e molda suas atitudes e comportamentos perante a relação contínua de convivência ao lado de sua “parceira” Alma.
Tamanha dicotomia, que na Teologia é o princípio que afirma a existência de dois elementos essenciais, o corpo e a alma, na constituição do ser humano, mostra com clareza quem dos dois revela mais alma no trato com a vida cotidiana.
Impressiona demais o trabalho de Dan Stevens em O Homem Ideal, entregando aqui sua melhor e mais surpreendente performance na carreira.
O ator inglês de 39 anos de idade que ficou mundialmente conhecido como o icônico monstro no musical A Bela e a Fera (2017), já havia demonstrado talento para apresentar personagens um tanto quanto mais caricaturais, como por exemplo, o cantor flamboyant na rom-com musical Festival Eurovision da Canção: A Saga de Sigrit e Lars (2020), também disponível no catálogo da Netflix.
Testemunhamos ele repetir algo um pouco mais próximo da paródia em O Homem Ideal, com um grande diferencial a ser destacado: seu calor humano é tão genuíno que nos perguntamos se estamos realmente praticando nosso melhor diariamente.