Críticas

Crítica | O Lar das Crianças Peculiares

De um tempo para cá, Tim Burton carregava consigo certa desconfiança. Alternando entre filmes bons e outros bastante questionáveis, o diretor parecia ter perdido muito da paixão existente em seus primeiros filmes. Parecia mais uma marca numa infinita repetição de estilo, do que um artista interessante, algo que ele mesmo criticara em seu filme anterior, Grandes Olhos (2014). Felizmente, O Lar das Crianças Peculiares vem para mudar essa conjuntura e proporcionar um filme que não tenha só uma cara de Burton, mas também a alma do diretor.

Como em grande parte de seus longas, Burton concentra-se num universo infanto-juvenil, centrando sua câmera na história de Jake, um garoto comum que vive na Flórida, mas não consegue viver como os outros adolescentes da cidade. O personagem cresceu com as histórias fantásticas de seu avô, Abe, e durante muito tempo aquilo foi seu maior aconchego. Após a misteriosa morte de Abe, o menino passa a acreditar veemente que as cantigas de seu velho eram reais e que é seu dever encontrar o orfanato com crianças peculiares recheado de monstros e grandes história, que aquele homem tanto falava. E realmente o protagonista passa a procurar esse lugar e encontrar as suas próprias aventuras.

Nessa breve sinopse, nota-se muitos pontos comuns do universo de Tim Burton: a) a figura do garoto outsider de seu próprio mundo, o subúrbio americano, e que sua desconfiguração social é tratada como uma característica positiva – em O Lar das Crianças Peculiares isso se torna literalmente um poder. E b) a questão essencial no universo do cineasta em que o fantástico surge para reorganizar a vida mundana, e não como se houvesse uma distinção entre real e imaginário, mas o mundo considerado normal é abraçado por completo pelo surreal, e o fantástico que reorganiza o real.

Em O Lar das Crianças Peculiares há muito mais de Burton. E a sensação é de uma volta à mente de um grande criador, tudo o que o consagrou está lá, mas do jeito mais puro possível, sem uma autorreferência. Como a construção de um filme quase infantil através de um universo visual que remete ao cinema de horror clássico, as diversas referências que surgem na tela, que vão além de uma simples citação, por exemplo, quando um dos personagens é capaz de dar vida a coisas inanimadas e sempre que utiliza seu poder o efeito especial para viver aqueles objetos é através do stop motion (técnica de animação feita foto a foto); e quando o garoto anima um monte de esqueletos, Burton faz uma referência clara a Ray Harryhausen, pioneiro dos efeitos especiais. Assim, o filme passa a impressão que mesmo sendo uma adaptação literária tem muito da cabeça e principalmente da paixão de Burton, nota-se a cada sequência um envolvimento profundo com sua obra e não apenas trabalho burocrático.

E é interessante como essa paixão reflete na construção técnica e estética do filme. Em O Lar das Crianças Peculiares, Tim Burton realmente faz um trabalho visual que está de acordo com suas pretensões narrativas, e não apenas buscando mais uma assinatura. Isso ocorre principalmente na direção de arte, em que suas sacadas mais interessantes são aquelas que não remetem diretamente ao trabalho do diretor. Como quando Jake ainda está na sua vida normal e os cômodos e ambientes parecem sempre pequenos, como se o protagonista tivesse sempre oprimido por aqueles espaços ordinários. Dessa forma, o teto sempre baixo dos cenários é como se comprimisse a mente fantasiosa desse personagem.

O mesmo ocorre com o uso do 3D, que funciona para reforçar esse mesmo ponto; o recurso tridimensional ajuda o filme a distorcer as figuras que estão em primeiro plano, as pessoas que habitam o lugar comum surgem literalmente estranhas na tela, através de um jogo óptico. Assim, o contraponto com aquele orfanato fica extremamente interessante, o lar extraordinário dos órfãos peculiares é o que passa mais aconchego ao personagem principal.

O que parece ainda mais notável em O Lar das Crianças Peculiares é que o filme tem uma paixão pela história, e aqui não se tratando apenas da narrativa do longa, mas justamente sobre o ato de se contar aqueles fatos. Esse é outro ponto fundamental na obra de Tim Burton e aqui surge mais uma vez de forma radiante. Talvez, esse seja o filme que isso apareça de forma mais sutil e por isso é tão prazerosa. Em O Lar das Crianças Peculiares há um deleite de narrar os fatos, o filme deixa com que seus personagens contem e recontem a história e apresentem os fatos através de outras perspectivas, o longa deixa com que suas figuras funcionem como um mediador daquela aventura e não apenas como participantes, e isso funciona, mesmo que ocorra de forma verbalizada, pois essa contação das histórias é carregado de afeto.

Burton se assume, e sempre se assumiu, como um contador de histórias, e explicitar esses sonhos e as fantasias é essencial para o cineasta. São elas que serão capazes de reorganizar aquela realidade que se apresenta e de apontar os caminhos a serem seguidos. Não é a toa que uma das crianças do orfanato tem como dom projetar seus sonhos num telão, ilustrando o processo do próprio cinema de Tim Burton.

Dessa forma que O Lar das Crianças Peculiares torna-se um filme sobre a paixão de contar uma história. E parece que o cineasta realmente reencontrou esse prazer, o longa e a forma como foi construído fazem com que o espectador pareça estar diante de um parque de diversões dentro da mente criativa de Tim Burton. O Lar das Crianças Peculiares vai muito além do que ficou conhecido como a estética de Tim Burton; aqui o cineasta encontra um coração para o seu filme.

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