O Filme nacional mais relevante do momento, ‘Ainda Estou Aqui’ é um longa de Walter Salles que teve uma exitosa estreia aqui em Veneza nesse domingo, além de colocar novamente o Brasil no radar do Oscar.
Contudo, além de tudo que o filme representa e que já abordamos aqui na minha coluna (clique aqui para ler), mais do que um eventual sucesso de crítica ou premiação a ser recebida, nós temos de nos aprofundar um pouco na dupla protagonista: Fernanda Torres e Fernanda Montenegro. É mais do que necessário assim o fazer.
Quando alguém diz “precisamos falar” ou “precisamos conversar”, geralmente a frase carrega consigo um ponto de atenção ou uma queixa. Nesse caso, a queixa é que talvez não estejamos ainda capazes de processar o que esse filme e esse encontro geracional representam. E por que? Porque há muito a ser dito sobre esse acontecimento raro na história do cinema nacional e, quiçá, mundial, que estamos tendo o privilégio de testemunhar. Eu explico:
Fernanda Torres
Fernanda Torres, protagonista do longa, está sendo muito elogiada nos bastidores do Festival e segue como uma das favoritas ao Coppa Volpi, que é o prêmio de Melhor Atriz. Há algum tempo uma atriz brasileira não figurava na lista entre as possíveis candidatas. Mas isso não é o mais importante.
Justiça seja feita: esse longa provavelmente irá relembrar ao grande público da versatilidade da atriz e, para os mais “esquecidos”, trará o redescobrimento do de uma Fernanda Torres madura e profunda, para além das comédias. Com essa atuação, certamente Montenegro será lembrada para a posteridade, independente de ganhar ou não prêmios aqui em Veneza.
Vale ainda lembrar que Torres é muito mais do que a brilhante e, ao mesmo tempo ensandecida Vani de “Os Normais”, personagem pelo qual o público provavelmente tem uma memória afetiva mais forte com a atriz.
Torres é tão versátil que é fácil para os desavisados esquecerem-se que ela construiu uma carreira diversificada no cinema, televisão e teatro. No cinema, destacou-se em “Eu Sei que Vou te Amar” (1986), onde ganhou o prêmio de Melhor Atriz no Festival de Cannes, com apenas 20 anos de idade! Além de participar de emblemáticos filmes como “O Que É Isso, Companheiro?” (1997), o divertido “Os Normais – O Filme” (2003) e “Casa de Areia” (2005) onde atuou também com sua mãe, Fernanda Montenegro.
Na televisão, tornou-se uma figura icônica com seu papel na série “Os Normais” (2001-2003), que embora tenha durado apenas 4 anos no ar, marcou uma geração com seu humor irreverente.
Torres também se destacou no teatro, em peças como “Brincando em Cima Daquilo” (1985), “Nelson Rodrigues por Ele Mesmo” (1992), “A Casa dos Budas Ditosos” (2004) e “Vênus em Visom” (2013) e consolidando-se como uma das grandes artistas brasileiras.
Fernanda & Fernanda (Torres e Montenegro)
Não é todo dia que mãe e filha podem se encontrar no cinema e ainda mais representar a mesma personagem. Embora ambas já tenham contracenado juntas no cinema em “Casa de Areia” (2005), agora as duas Fernandas vivem uma situação ímpar: são uma personagem só, em momentos diferentes da vida.
Precisamos no entanto, entender também o simbolismo que tem associado o fato de ambas estarem juntas em “Ainda Estou Aqui”. Em especial, por ser inevitável a comparação com “Central do Brasil”. Embora tenham escopos diferentes, onde um fala sobre as dificuldades da vida e a pobreza material, o outro nos faz questionar sistemas políticos totalitários e suas arbitrariedades, ambos filmes têm a assinatura de Walter Salles e o poder de provocar fortes emoções no público. A comparação fica ainda mais evidente quando temos de um lado, participando do mesmo filme, Fernanda Montenegro, que concorreu ao Oscar de Melhor Atriz há 25 anos atrás, e do outro lado sua filha, Fernanda Torres, hoje disputando em Veneza e potencialmente no Oscar no próximo ano.
Alguns veem nesse encontro geracional, promovido pelo filme, a possibilidade de enfim a Academia fazer justiça à nossa Dama do Cinema, 25 anos depois de Central do Brasil. É possível.
Fernanda Montenegro
Multimídia e polivalente, Fernanda Montenegro é uma lenda viva da dramaturgia brasileira e internacional, com uma carreira que abrange mais de sete décadas no teatro, cinema e televisão. Embora não tenha recebido o Oscar em 1999, recebeu uma das mais importantes premiações do cinema mundial: o Urso de Prata de Melhor Atriz no Festival de Berlim, por sua atuação em Central do Brasil.
Na televisão, Montenegro é celebrada por papéis em novelas e minisséries icônicas, como A Dona do Mundo (1991) e Hoje é Dia de Maria (2005). No teatro, Montenegro é uma das fundadoras do Teatro dos Sete, juntamente com Sérgio Britto, Ítalo Rossi, e Gianni Ratto, tendo um papel crucial na renovação do teatro brasileiro, influenciando várias gerações de artistas e plateias. Em 2013, tornou-se a primeira atriz brasileira a receber um Emmy Internacional por seu papel na série Doce de Mãe.
Vale lembrar que, na ocasião de “Central do Brasil”, em 1999, Fernanda Montenegro disputava com Cate Blanchett (por “Elizabeth”), Meryl Streep (por “Um amor verdadeiro”), Emily Watson (por “Hilary e Jackie”) e Gwyneth Paltrow (por “Shakespeare apaixonado”). Na ocasião, para a surpresa de todos, que em sua maioria apostavam na gigantesca Meryl Streep, Paltrow levou a estatueta.
Ainda Estou Aqui
Mãe e filha compartilham nessa obra um vínculo artístico profundo e significativo, pois ambas interpretam a mesma personagem, Eunice Paiva, em diferentes fases da vida.
Essa colaboração entre mãe e filha não apenas destaca a continuidade do talento entre gerações, mas também enriquece a narrativa do filme, que aborda temas como memória, identidade e luto no contexto da ditadura militar brasileira. A presença de ambas traz proporções titânicas ao filme no quesito atuação, conferindo ao filme uma camada adicional de profundidade emocional e autenticidade, tornando “Ainda Estou Aqui” um marco na carreira de ambas e um poderoso comentário sobre a resistência e a memória histórica.
No final, o que nos toca e o que faz do cinema algo tão especial é a sua linguagem e não necessariamente os meios usados. O principal não se trata de efeitos especiais magníficos ou investimentos bilionários em CGI, mas a capacidade do ator de conversar com a nossa alma. E é isso que os grandes festivais como Cannes, Berlim e Veneza premiam: ainda bem
Certamente, esse filme tornar-se-á, em alguns anos, um daqueles que todo estudante da sétima arte precisa ver para entender o cinema brasileiro, assim como hoje são Central do Brasil, Cidade de Deus e Tropa de Elite, e tantos outros gigantes que injustamente não foram citados por mim aqui.