Séries

Velho Chico | Apostando no visual e no drama, novela traz proposta diferente

O diretor Luiz Fernando Carvalho, que comanda as decisões artísticas por trás de Velho Chico, é conhecido pelo trabalho em novelas muito populares dos anos 90, como Pedra sobre Pedra, Renascer e O Rei do Gado. Da virada dos século XXI para cá, no entanto, Carvalho ficou famoso como o responsável por produções mais inovadoras, a começar pelo poético e metódico Lavoura Arcaica, seu único filme para cinema, seguindo no estilo em minisséries como Hoje é Dia de Maria, A Pedra do Reino e Capitu, e finalmente transpondo essa proposta quase lúdica de visual para as novelas em Meu Pedacinho de Chão, de 2014.

Enquanto essa última que citamos foi exibida no horário das seis horas, o menos disputado da programação da Rede Globo, e durou apenas 96 capítulos, Velho Chico estreou hoje (14) na faixa das nove, considerada a mais nobre pela emissora, e deve contar 150 capítulos segundo previsões dos autores. É interessante observar como, nesse sentido, a Rede Globo recorreu à Carvalho para resgatar a popularidade da sua “novela das nove” de uma forma surpreendentemente bem guiada: apostando em novidade e em excelência.

Sucedendo uma série de histórias contemporâneas e urbanas, Velho Chico começa nos anos 70, em plena ditadura militar e explosão da Tropicália, mas usa isso como fundo para uma história de sertão sofrida e cheia de complexidades. A diferença é impossível de perder: saem de cena as dondocas e playboys, executivos poderosos e outros personagens classe média-alta que frequentam as novelas da Globo, e entram coronéis inescrupulosos com traumas familiares, militares em busca de justiça, plantadores de algodão e sertanejos sofrendo com a seca, um estudante boêmio de Salvador e sua paixão, uma cantora de bar.

Rodrigo Santoro entra em cena – em sua volta às novelas – como Afrânio, o estudante em questão, enrolado com Iolanda (Carol Castro) e curtindo a vida às de estudante de direito às custas do pai, o poderoso Coronel Jacinto (Tarcísio Meira), que enfrenta acusações do Capitão Rosa (Rodrigo Lombardi) quanto ao preço que paga aos plantadores de algodão pelo seu produto, que vende do outro lado do rio a um valor muito maior. Está plantada a semente da discórdia entre as duas famílias que vai mover a trama, cobrindo décadas, como os autores já revelaram, dizendo se tratar de “uma saga familiar shakespeariana”.

Velho Chico mostra-se menos maniqueísta do que parece, no entanto. Nos retratos de Afrânio de do pai coronel, mesmo que os dois nunca dividam a cena nesse primeiro episódio, os autores ensaiam uma reflexão sobre a perduração de comportamentos machistas de geração em geração. Em certo momento, a novela implica que o Coronel Jacinto pode ser um pouco mais abusado com as empregadas da casa do que fica explícito, e a relação de Afrânio com Iolanda passa por momentos em que a moça precisa ser assertiva frente aos avanços insistentes do “coronelzinho”, como ela o chama, após uma rejeição.

A natureza de uma novela é não mostrar a profundidade de seus temas e o território que pretende cobrir logo de cara, mas Velho Chico carrega um quê de consciência social em sua história, apesar do que as recentes declarações de Benedito Ruy Barbosa podem ter feito crer. Há também algo de crítica política, é claro (“O silêncio do povo faz o opressor”), algo de quietamente subversivo que talvez a Rede Globo tenha deixado passar sem querer. Mas para saber direitinho de tudo isso, só conferindo como a trama segue adiante nos próximos meses.

O que já dá para perceber, sim, é que poucas novelas recentes foram feitas com o cuidado artístico e a sensibilidade poética que Luiz Fernando Carvalho emprestou para Velho Chico. A fotografia está de fato linda, achando ângulos, filtros e texturas onde não tinha direito nenhum de achar: nas rugas de Tarcísio Meira, nos galhos que servem de cerca para a propriedade de um casal de sertanejos, nas muitas texturas, tecidos e peles que formam o núcleo de Salvador. Cenografia, trilha-sonora e direção de arte, cabelo e maquiagem trabalham em sincronia perfeita para criar uma tapeçaria do nordeste que nos transporta não só geograficamente, mas também no tempo.

Na direção de atores, Carvalho conduz a novela a uma dramaticidade teatral que não se vê sempre na teledramaturgia, dirigindo performances que não tem medo da hipérbole ou da sensibilidade de cada expressão e gesto. Meira é o grande destaque do primeiro capítulo, trazendo à tona os arrependimentos, a sordidez, o luto, o profundo desprezo e a tremenda ganância de um personagem vilanesco que entra e sai de cena como um furacão expressivo.

Carol Castro está espetacular também, se comprometendo com o estilo da encenação e criando uma performance muito física e sedutora ao mesmo tempo em que empresta bravado, resistência, independência e resiliência à personagem. O próprio Santoro não tem muito espaço para mostrar tanto das suas capacidades interpretativas – lá se vai mais da metade do capítulo até ele ter uma linha de diálogo –, mas seu Afrânio parece uma construção tão sutil e eficiente quanto tudo o que nos acostumamos a ver dele.

Nas mãos desse elenco e desse diretor, Velho Chico reinventa a roda com elegância, contando uma história que não precisa entregar todas as fichas logo no começo para funcionar. Em certos momentos, a nova trama da nove atinge um pico de comoção inesperado – é a mágica de uma boa narrativa funcionando como há muito tempo não funcionava na dramaturgia da Globo.

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