Bem-vindos de volta ao OMG!, a coluna de assuntos LGBT do Observatório do Cinema. Se vocês lembram bem da nossa última coluna (leia aqui), Sense8, a série do Netflix, acabou sendo o destaque da nossa avaliação de como os personagens gays, lésbicas e transexuais foram representados na TV na última temporada 2015/16.
De certa forma, então, essa é a nossa extensão daquela coluna, aproveitando a atenção que Sense8 voltou a receber com as notícias da segunda temporada e a visita do elenco ao Brasil para destrinchar exatamente porque a série das múltiplas nacionalidades é tão importante.
Faz mais de um ano que a primeira temporada de Sense8 estreou no Netflix, seus 12 episódios postados ao mesmo tempo no dia 5 de junho de 2015. A série representou uma espécie de redenção para as irmãs Lana e Lilly Wachowski, chegando poucos meses depois da estreia nos cinemas de uma rara derrapada na carreira das moças, o épico O Destino de Júpiter, estrelado por Channing Tatum e Mila Kunis. As irmãs, conhecidas por criar a franquia Matrix e pelos subsequentes V de Vingança (2005), Speed Racer (2008) e A Viagem (2012), enfrentavam o que poderia ser o momento mais baixo de suas carreiras, e viraram heroínas cult poucos meses depois.
De certa forma é muito interessante observar essa trajetória, porque assistir O Destino de Júpiter é testemunhar o primeiro filme em que as irmãs Wachowski não são distintamente elas mesmas. O estilo inconfundível das irmãs tem a ver com excesso, mas um excesso estiloso que funciona com, e não contra, a narrativa – em Matrix, as cenas de ação com câmera lenta e os figurinos idiossincráticos e minimalistas entraram para o inconsciente coletivo; em Speed Racer, a psicodelia e o espírito infantil ajudavam a vender a narrativa simples e familiar; em A Viagem, o excesso de poesia nos visuais e a escalação repetida de mesmos atores em “tempos” e papeis diferentes dava coesão a uma história fragmentada.
Em O Destino de Júpiter, por outro lado, as Wachowski parecem jogar todas suas ideias no ventilador e tentar tirar algo de significativo de uma mistura que não faz sentido nenhum. Um dos personagens é (é sério) meio-lobo, meio-anjo, meio-albino e meio-humano. Seguindo a deixa de seu protagonista, O Destino de Júpiter é um misto de tanta coisa que não consegue encontrar sua própria personalidade – e é difícil não pensar que talvez esses problemas tenham a ver com o momento pessoal que as irmãs passavam.
Lana se revelou transgênero em 2012, durante uma entrevista para promover A Viagem, e logo em seguida a vida pessoal das irmãs se tornou alvo de um olhar muito mais restrito da mídia, a ponto de um tabloide britânico pressionar a irmã de Lana, Lilly, a também anunciar sua transgeneridade (até 2016, Lilly ainda se identificava publicamente como Andy Wachowski) antes que o próprio tabloide a “revelasse à força” para o mundo. Lilly não deixou isso acontecer, mas faz sentido, de certa forma, que, no período, a arte das irmãs tenha a vontade de se encaixar e se moldar às exigências do estúdio e do público médio. Sorte a nossa que Sense8 apareceu logo depois.
Na série do Netflix, fica abundantemente claro que Lana e Lilly tem toda a liberdade de serem elas mesmas. Em parceria com o escritor de quadrinhos J. Michael Straczynsky, as Wachowski escrevem um épico transbordando temas de empatia, que olha para uma série de minorias e setores oprimidos da sociedade e os coloca juntos para uma experiência de aprendizado uns com os outros. É uma teia complexa, cujas cenas de ação e momentos ultra-sensitivos são muito particulares da obra das Wachowski – Sense8 é o trabalho de uma dupla de criadoras transgênero que representa com ferocidade, solidariedade e consciência essa parte da população. Além de intérpretes trans, precisamos também de mais criadores trans, e as Wachowski representam um passo a frente nesse sentido.
Rosa cheia de espinhos
Para além de Sense8, a representatividade trans na TV é, quase sempre, uma faca de dois gumes. Numericamente, a situação é lamentável – segundo o GLAAD, principal referência da área de assuntos LGBT na mídia, a última temporada de televisão apresentou 271 personagens regulares ou recorrentes em suas séries (contando emissoras abertas, a cabo e serviços streaming); deles, apenas sete se identificavam como transgênero. Para um tema social tão em alta, e que ainda precisa de tanta exposição para ser reconhecido e discutido, é uma representatividade pífia e explicada apenas pelo medo ou preconceito de executivos de TV em contratar e contar histórias de pessoas trans.
Ainda pior, a maioria desses personagens transgênero atualmente na TV americana é interpretada por atores ou atrizes que não são trans. A questão aqui é que mesmo as séries que abrem espaço para personagens transgênero nem sempre acertam em seus retratos deles, ou nas pessoas que chamam para pintar esses retratos. Transparent, celebrada série da Amazon sobre a matriarca de uma família que revela ser transgênero, tem uma larga equipe de profissionais trans, mas mesmo após se estabelecer como um sucesso de crítica e público para a sua plataforma, não deixou de contratar atores cis reconhecíveis para papeis de pessoas transgênero. E não para por aí.
A primeira escritora transgênero de Transparent entrou para a equipe apenas na segunda temporada, e é claro que a equipe da série está correta em buscar a perspectiva de uma mulher trans para sua sala de roteiristas. O problema é que Our Lady J é uma parte polêmica da comunidade trans, e definitivamente não está equipada para representar todas ou mesmo a maioria das pessoas transgênero em qualquer campo. Só recentemente Lady J se envolveu em uma polêmica em torno de RuPaul, o apresentador do reality show RuPaul’s Drag Race, por conta do uso que a drag queen faz de termos considerados ofensivos pela comunidade trans.
Our Lady J ficou do lado de RuPaul, e embora haja também outros membros da comunidade trans que defenderiam o que ela disse, a polêmica da declaração denota que a roteirista não é capaz de guiar, sozinha, uma equipe de escritores cisgênero em uma história sobre personagens trans. Representatividade, como frequentemente apontam vários membros de várias comunidades oprimidas, não é sobre incluir uma ou duas visões trans em seu processo criativo, e sim sobre se esforçar para ter uma visão ampla sobre o assunto representada dentro dele.
E sabe quem é que está fazendo representatividade do jeito certo? Não é exatamente a série prestigiada e premiada do Amazon, e sim a série adolescente recém-cancelada da MTV. Ao incluir pela primeira vez um personagem trans na sua narrativa, em um arco de cinco episódios na terceira e última temporada, Faking It pediu ajuda ao GLAAD para fazer um anúncio de elenco que pedia por atores transgênero, fez testes, e escolheu o estreante Elliot Fletcher. Na pele do adolescente trans Noah, Fletcher abriu portas em sua carreira – ele já está escalado para viver um personagem na quarta temporada de The Fosters, da Freeform.
Além disso, a equipe de roteiristas de Faking It contou com a assistência do GLAAD para montar várias reuniões com adolescentes transgênero reais, a fim de que o resultado final dos roteiros envolvendo Noah não fosse de forma nenhuma ofensivo ou falho. Em seu cerne, a verdade é que a storyline foi guiada por pessoas trans e aprovada por uma organização que trata de responsabilidade e representatividade na mídia, mesmo que não tenha sido redigida em si por essas pessoas. É importante buscar esse apoio e essa supervisão tanto quanto é importante, digamos, ter um consultor médico revisando os roteiros de Grey’s Anatomy ou House. É sobre verossimilhança tanto quanto é sobre responsabilidade social – faz bem para a trama e para a sociedade.
“Trans is beautiful!”
Se na TV a inclusão começou a parecer real nos últimos tempos graças aos esforços válidos, mesmo que falhos, de alguns showrunners e outros membros da indústria, no cinema a estrada é ao mesmo tempo mais longa e mais tortuosa. A primeira representação de um personagem transgênero com destaque no cinema aconteceu em 1970, no drama biográfico Quando o Sexo se Define (sim, péssimo título), em que o ator cis John Hansen interpretava uma famosa mulher trans dinamarquesa.
Representações anteriores incluem o terrível Glen ou Glenda? (1953), de Ed Wood. Sim, ele mesmo, o infame “pior diretor da história” que ganhou um filme dirigido por Tim Burton em 1990 e ficou conhecido por seus hábitos de crossdresser na intimidade. O filme hoje em dia tem um quase-charme de clássico trash, misturando as técnicas horríveis de Wood com um entendimento praticamente nulo da condição da transexualidade, mas ao mesmo tempo mostrando compaixão e compreensão para seus personagens, numa obra que obviamente é muito pessoal, ainda que de uma forma equivocada, para Wood.
O primeiro contraste a se fazer ao falar de representatividade trans no cinema é a diferença entre a quantidade (e note que falamos em quantidade, não qualidade) de histórias contadas sobre mulheres e homens trans. A imensa maioria de exemplos de personagens transgênero no cinema trazem a perspectiva das moças, e um bom exemplo é notar que a primeira aparição de destaque de um homem trans no cinema foi em Meninos Não Choram, que rendeu a Hillary Swank seu primeiro Oscar, quase 30 anos depois de Quando o Sexo se Define.
Vale lembrar também que, até Elliot Fletcher aparecer em Faking It, nenhum homem trans havia interpretado o papel de um homem trans em qualquer mídia filmada. O exemplo mais recente que temos, em 2015, é Meu Nome é Ray, que conta com Elle Fanning no papel de um homem trans em processo de transição. A conclusão a tirar dessa diferença enorme de número e consideração que existe na representação dos dois lados da comunidade transgênero (e não estamos nem pensando nas pessoas que não se conformam ao binarismo, hein!) é que, mesmo em outras questões sociais, predomina um sentimento de que o problema do homem, numa definição biologista de homem, importa mais do que o da mulher. Pouca gente de fato reconhece e pensa nos direitos do homem transexual, e nas particularidades de sua experiência, e isso é um problema.
Dito isso, vale olhar para a história positiva do cinema quanto à representação transgênero. O cinema independente americano tem sido espetacular nesse sentido, mas demorou para pegar o rastro da consciência social também: a primeira vez em que uma mulher transexual interpretou um papel trans no cinema indie americano foi em 2011, no filme Gun Hill Road. A trama mostra um presidiário voltando para casa após três anos de confinamento, para descobrir que sua filha Vanessa, que ele conheceu como Michael, está em processo de transição. A atriz transexual Harmony Santana interpretou o papel de Vanessa, se tornando a primeira mulher trans a ser indicada a um dos grandes prêmios do cinema ao ganhar nomeação ao Independent Spirit Awards pelo desempenho.
Em 2014, a atriz Michelle Hendley interpretou uma jovem trans em processo de transição no romance Boy Meets Girl, saudado como um dos melhores filmes sobre o tema já feito. E em 2015, Mya Taylor e Kitana Kiki Rodriguez fizeram história ao interpretar as prostitutas trans Alexandra e Sin-Dee em Tangerine, uma comédia espetacularmente sensível do diretor Sean Baker. Explorando a tragédia e a graça da vida dessas personagens com um olho agudo e a contribuição inestimável de suas atrizes, que trazem gravidade e genuinidade para os papeis, a obra filmada inteira (e lindamente!) em iPhone rendeu para Mya Taylor o prêmio que escapou à Harmony Santana – o Independent Spirit Awards de Melhor Atriz Coadjuvante.
Em seu discurso como a primeira mulher trans a receber um dos grandes prêmios do cinema americano, Taylor avisou: “Há talento transgênero por aí. Há lindos talentos transgêneros por aí. Então é melhor vocês saírem e os colocarem nos seus próximos filmes!”. Está dado o recado.
O espectro da sexualidade de Kinsey
Voltando rapidamente a falar de Sense8, vale ressaltar que não é só pela representatividade trans que série das irmãs Wachowski simplesmente precisa ser assistida. Há algo de especial em seu retrato da sexualidade de seus personagens também – em uma cena da primeira temporada que ficou famosa, todos os oito integrantes do grupo principal, que são conectados mentalmente para ver, sentir e saber o que os outros sabem, se reúnem em uma enorme, digamos assim, “experiência grupal”. Personagens inicialmente héteros e gays se misturam em uma conexão mental que é mais poderosa do que qualquer estereótipo ou barreira de sexualidade.
Em um tweet respondendo a um fã, o ator Brian J. Smith, que interpreta o policial Will, confirmou que as irmãs Wachowski trabalham na percepção de que todos os seus personagens são pansexuais, ou seja, se atraem por pessoas independente de seu sexo biológico ou identidade de gênero. A abordagem pode parecer radical, mas absolutamente não é – de certa forma, ela empresta conceitos tão antigos quanto um estudo de Kinsey de 1948 que colocava em uma escala de seis níveis a sexualidade humana.
Sobre isso, Kinsey dizia: “Homens não são representados através de duas populações exclusivas: homossexual e heterossexual. O mundo não é subdividido entre carneiros e cabras. É um fundamento da natureza que ela raramente pode ser tratada em duas categorias distintas e separadas. O mundo em que vivemos é contínuo em todos e em cada um dos aspectos”. Na escala de Kinsey, (0) é “exclusivamente heterossexual”, (6) é “exclusivamente homossexual”, (3) é “bissexual” e os números restantes são exatamente o que você espera – escalas de frequência que colocam a sexualidade humana como uma matéria fluída.
De sua forma, Sense8 está muito mais correto sobre a sexualidade humana do que qualquer outra peça de entretenimento que tenhamos produzido. Se nos livrássemos completamente de preconceitos e da noção de que a heterossexualidade é o padrão (o que leva ao conceito de que a homossexualidade, quando assumida, também deva ser um conceito restrito e gravado em pedra), a sexualidade provavelmente nos apareceria líquida tanto quanto apareceu à Kinsey quase 70 anos atrás. Em sua ficção científica, as Wachowski chegaram muito mais perto da realidade do que nós mesmos conseguimos.
A OMG! volta no próximo dia 24.