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Crítica | 3% - Primeira Temporada

ATENÇÃO PARA SPOILERS A SEGUIR

3%, primeira série original brasileira da Netflix, se passa em um mundo distópico onde a maior parte da população vive em condições escassas no chamado Continente. A única maneira de sair dessa situação é passando pelo Processo, uma série de provas e testes aos quais os habitantes do Continente se submetem aos 20 anos de idade e que permitem a eles viver em Mar Alto, um lugar onde os recursos são fartos e a vida é digna. Acontece que apenas 3% dos candidatos passam pelo teste e existe, no Continente, A Causa, um grupo revolucionário que busca acabar com essa organização estabelecida na sociedade.

Desde o início dos testes do Processo, surgem indícios de que a aparente paz que perdura nesse ambiente tecnológico onde os candidatos são submetidos aos testes não é bem o que pode parecer. Pequenas conversas e olhares começam a anunciam de que alguns dos integrantes desses 3% que conduzem os testes têm histórias uns com os outros, boas ou ruins, e os verdadeiros planos dos participantes para fazer parte desses 3% começam a ser revelados.

Já no primeiro episódio de 3%, “Cubos”, notamos uma maneira não muito usual de se filmar uma série de televisão, câmeras mais vivas, que passeiam pela cena e não têm receio de se aproximar das personagens, planos e contraplanos quebrados e aliados a quadros abertos da cena, indicando o quanto esse novo ambiente acaba engolindo seus participantes. O episódio termina com um gancho que revela que Michele (Bianca Comparato) é membro da Causa e quer vingança contra Ezequiel (João Miguel), coordenador do Processo, por ele ter matado seu irmão.

É impressionante a mudança de tom a cada prova, na primeira – a dos cubos – começamos a entender mais a fundo a dinâmica a ser estabelecida entre as personagens. Michele (Bianca Comparato) ajuda Fernando (Michel Gomes), que não conseguiria alcançar as peças na mesa por ser paraplégico e usar uma cadeira de rodas – a relação entre os dois se aprofunda a cada episódio, culminando em um final trágico. A segunda prova tem um clima futurista com uma trilha impressionante que agrega tensão a cena e a terceira, onde os participantes têm de atravessar um corredor sobre efeito de um gás que traz à tona traumas de seu passado no Continente, é filmada com um ar de filme de terror, cheia de cortes velozes que intensificam a tensão da cena, mas que em nenhum momento deixam o espectador perdido em seus quadros. A trama caminha enquanto os arcos de cada personagem se interlaçam e as personagens acabam tendo sua personalidade mudada a cada teste.

A quarta prova deixa todos os participantes que restaram até então presos em um dormitório e é o episódio que marca exatamente a metade da temporada. Com um clima de Ensaio Sobre a Cegueira, uma parte dos participantes toma as rédeas da situação em uma prova de confinamento e passa a oprimir todos os outros com violência para monopolizarem água e comida. Marco (Rafael Lozano) assume a liderança, o personagem vindo de uma família de pessoas que têm a tradição de passar pelo processo se converte em uma figura violenta que chega a assassinar uma das participantes para servir de exemplo.

Vale ressaltar, aqui, a coragem do roteiro em inverter as personagens – e torná-las mais complexas – nesse momento e, mais importante, de matar um dos protagonistas e principais candidatos a pertencer aos 3% no final do episódio que marca o fim da primeira metade da série. Rafael (Rodolfo Valente) é apresentado primeiramente como um vilão, trapaceando para passar na primeira prova, mas é o primeiro a levantar a voz contra a tirania de Marco, o garoto meritocrático que acaba se convertendo rapidamente em um líder totalitário em meio a uma escassez de recursos. Ele acaba sendo espancado pelos participantes e, se arrastando pelos corredores para passar pelo portão e continuar no Processo, acaba esmagado em um final sangrento.

João Miguel em 3%.

No início da segunda metade da temporada temos um episódio inteiro dedicado a explorar Ezequiel, o coordenador do Processo, que articula tudo e todos para que ele ocorra sem maiores problemas. Nesse capítulo, ficamos sabendo de seu passado, da sua esposa que deixou no Continente antes de passar pelo Processo – mais a frente veremos que todos os membros dos 3% se tornam estéreis – e que acaba se tornando a primeira pessoa a se suicidar em Mar Alto por não conseguir lidar com a situação.

Nesse episódio, Ezequiel mostra sua espécie de competição com o conselheiro Mateus (Sergio Mamberti). Poder, afeto, compaixão, medo, saudade… O episódio conecta personagens por inúmeros sentimentos e desejos que tornam a trama mais vívida e que atribuem maior profundidade a ela,

No sexto episódio se confirma o que parece ser a única falha da série: Rafael tem 21 anos e roubou o registro de seu irmão para participar novamente do processo. Em um mundo tão evoluído tecnologicamente, com câmeras espalhadas por tudo e um totalitarismo digno de 1984, ninguém tinha nenhum registro das feições do rapaz? Da retina? Ou do passado de Rafael, uma vez que os encarregados do Processo possuem tanto controle sobre seus participantes? Como a série é boa – e muito boa mesmo! – deixamos essa passar.

A interação entre as personagens vai ficando mais complexa a cada episódio, os jogos de Ezequiel para se manter no poder envolvem punir personagens inocentes e Michele é descoberta, mas salva por Ezequiel – que também já foi membro da Causa – que revela que o irmão dela está vivo e que ela foi enganada pelo líder da Causa.

Por fim, personagens que até o último minuto tinham sido aprovados pelo Processo – Joana e Fernando – acabam sendo expulsos e Joana aparece pelas ruas do Continente olhando uma pichação da Causa. Rafael, membro da Causa e aprovado no Processo, é recebido pelos 3%. Esses dois núcleos formam provavelmente os ganchos para uma 2ª temporada.

Vale ressaltar que a série brasileira não deve em nada a outros dramas distópicos como Westworld (HBO) e Black Mirror (Netflix). 3% conta com produção impecável de cenários, ótimas atuações (com destaque para João Miguel, Vaneza Oliveira, Bianca Comparato e Michel Gomes), boa direção e roteiro. Que venha a segunda temporada!

3%, primeira temporada
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