Em 21 de janeiro de 1992, com um orçamento apertado de US$ 1,5 milhões, Quentin Tarantino lançava Cães de Aluguel. O longa, que é o precursor do estilo que o diretor adotaria em seus filmes posteriores, mais tarde seria considerado o maior filme independente de todos os tempos pela revista Empire.
O uso de palavrões e violência extrema não eram tão comuns – ou tão explícitos – no cinema em 1992. Pois foi exatamente esse o caminho que o filme criado pelo ex atendente de locadora seguiu. É bem verdade que Cães de Aluguel obteve uma bilheteria morna (foi lançado inicialmente em apenas 19 salas de cinemas), faturado modestos US$ 147 mil. Expandido para 61 salas, estagnou sua arrecadação em pouco mais de US$ 2 milhões em bilheteria.
A reviravolta viria com Pulp Fiction, dois anos depois, em 1994. O reconhecimento do filme alavancou Cães de Aluguel, que foi inserido no Festival Sundance de Cinema. De lá para cá, Tarantino alcançou o reconhecimento e prestígio mundial, e até então nunca parou: seu último lançamento foi Os Oito Odiados, em 2015 – considerado por muitos o “Cães de Aluguel do faroeste”.
Falar de Cães de Aluguel é falar de praticamente toda a filmografia do diretor. De fato, o filme é aclamado até os dias atuais, e talvez seja um dos maiores acertos de Tarantino – e não apenas pelo uso ousado de palavrões para a época, mas pelo envolvimento que a narrativa não linear exigia: Tarantino prefere, aqui, separar os acontecimentos do filme em pequenos capítulos, como em livros, que não necessariamente seguem a ordem cronológica.
Ao citar essa característica de Cães de Aluguel, podemos também citar automaticamente Kill Bill (2003/2004), Bastardos Inglórios (2009) e Os Oito Odiados (2015), por exemplo. Todos esses filmes seguem essa mesma lógica, e não importa se o ano é 1992 e o uso de palavrões é restrito, ou se é 2015 e ninguém mais repara nisso: basta assistir a alguns poucos minutos de Tarantino que já seremos inevitavelmente fisgados, buscando as pontas soltas que as tramas propositalmente nos dão.
E justamente essa sensação de estar preso à trama (“Quando isso aconteceu? Esse personagem não estava morto na cena passada? Como essa história fará sentido?”) é o trunfo de Cães de Aluguel. De fato, apenas esse fator já seria o suficiente para Tarantino ser reconhecido como um notável contador de histórias – de uma trama essencialmente simples, ele consegue criar um quebra cabeças que pode nos entreter por horas a fio – ou até mesmo se desdobrarem em dois filmes, como é o caso de Kill Bill.
Mas assistir a Quentin Tarantino não se resume a jogatinas de narrativas. Há mais do que isso. Em toda a sua filmografia, há um toque do que há de mais animalesco e instintivo no ser humano. O diretor sempre brinca e acaba por ultrapassar, propositalmente, a linha da barbárie – e isso nunca é sem fundamento. Cada agressão, cada gota de sangue dos vários litros que vemos em seus filmes tem uma razão de ser.
Ainda à ocasião do lançamento de Cães de Aluguel, Tarantino comentou ao The Seattle Times sobre a violência que estava “em cada cena” de seu filme. Segundo ele, “para algumas pessoas, a violência e o palavreado rude é uma montanha que não conseguem escalar. Ok, não é o negócio delas. Mas assim eu as estou afetando. Eu quero que as cenas sejam perturbadoras”.
E, de fato, ele consegue. É através da violência extrema, não usual até então, que Tarantino arranca nossa atenção quase que à força; é muito bonito assistir ao ordinário, ao comum no cinema, mas quando vemos aquilo que não podemos fazer… é tentadoramente perturbador. Quem nunca sentiu uma enorme satisfação em assistir à vingança de Shoshana em Bastardos Inglórios? Quem nunca se perguntou como seria o rumo da história mundial se Hittler realmente tivesse ‘virado peneira’?
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O uso da violência é controlado inconscientemente pelo homem através da sua vivência em sociedade. E não defendo o uso da violência – muito pelo contrário. Mas é justamente por Tarantino compreender tal controle que, em seus filmes, extrapola a todos eles. É como se nossos desejos mais obscuros, mais instintivos e sádicos fossem saciados com suas narrativas viscerais, como uma válvula de escape natural – só para depois nos sentirmos aliviados por, no fundo, não participarmos do que vimos: “nossa, ainda bem que não foi a minha orelha que foi decepada com um canivete, e que ninguém tirou meu olho com um golpe milenar”.
Outro elemento que torna Tarantino ‘o’ Tarantino são as trilhas sonoras. Todos que estão minimamente familiarizados com o cinema já ouviram o tema de Kill Bill (ainda que não saibam que de onde é). Pulp Fiction está literalmente repleto de ícones musicais pop. Os Oito Odiados ganhou nada mais, nada menos do que quatro prêmios para a trilha sonora original de Ennio Morricone (Critic’s Choice Award, Prêmio BAFTA de Cinema, Globo de Ouro e o Oscar). Cães de Aluguel combina o rock da década de 1970 e uma extensa cena de tortura, o que causa certa estranheza à qual ficamos pendurados – e, aqui, a união de uma trilha leve a uma cena sangrenta não deixa de ser, novamente, uma analogia à batalha que travamos entre o moralmente correto e o prazer mórbido que Tarantino nos faz sentir em seus filmes.
Durante o Evento de Criatividade da Adobe Max deste ano, em San Diego, EUA, Tarantino declarou que, a contar do lançamento de Cães de Aluguel, pretende fazer apenas mais dois filmes antes (infelizmente) de encerrar sua carreira – no topo: “Felizmente, a maneira que defino sucesso quando eu terminar minha carreira é de que sou considerado um dos melhores cineastas que já existiu (…); dizer para todo mundo: ‘Faça melhor que essa p****”.
Ainda que soe um pouco altivo e orgulhoso, temos que dar o devido mérito. Cada grande cineasta da história possui o nicho em que mais se sente confortável trabalhando. E Tarantino fez de modo exímio tudo aquilo que se dispôs a fazer.