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Orphan Black é muito mais do que Tatiana Maslany (mas jamais funcionaria sem ela)

Neste sábado (12), após cinco temporadas, chegamos ao final de Orphan Black. O episódio final fica disponível na Netflix a partir do domingo (13), e o último ano da série nos Emmys será 2018. O finale é intitulado “To Right the Wrongs of Many” (“Corrigir os erros de muitos”, trecho do poema Protest, de Emma Wheeler Wilcox, como todos os capítulos dessa temporada), e este que vos fala escreve esse artigo antes de assisti-lo. Embora não tenha spoilers, portanto, apertem os cintos, porque o que segue é uma análise emocional e cerebral do legado de uma das mais importantes séries de ficção científica da nossa época.

É curioso caracterizá-la assim, no entanto, já que, quando eu comecei a assistir a Orphan Black, lá em 2013, dificilmente esse seria um rótulo apropriado. Era uma história que se movia com rapidez impressionante, sim, e que tinha um faro esperto para climaxes e personagens carismáticos, mas não era uma grande série, na maior parte do tempo. Quando era, era só por causa de Tatiana Maslany.

Três das faces de Tatiana Maslany em Orphan Black
Três das faces de Tatiana Maslany em Orphan Black

Em meio ao pastiche de pseudociência e convenções pulp que era a trama mitológica da série, a canadense Maslany enfrentava o desafio hercúleo de dar vida a múltiplas personagens ao mesmo tempo, e entende-las na relação que tinham umas com as outras, mas também em sua individualidade construída nos pequenos detalhes de suas jornadas, estivessem eles em tela ou subentendidos. Quando Orphan Black queria ser entretenimento passageiro, Maslany a fazia uma coleção impressionante de castelos de cartas, construídos em superfície cambaleante e caótica, que poderiam desmoronar a qualquer momento.

Em algum momento no decorrer desses 50 episódios, no entanto, os criadores John Fawcett e Graeme Manson alcançaram sua estrela na corrida. Talvez da terceira temporada para frente, Orphan Black virou sua mitologia boba de cabeça para baixo e usou os clichês pulp contidos nela para criar uma reflexão que é, francamente, revolucionária. Em algum lugar no meio do caminho, Orphan Black se tornou maior que Tatiana Maslany, embora jamais pudesse funcionar sem ela.

Em seu auge, na quarta e quinta temporadas, a série casou a análise intrincada dos personagens que Maslany construiu (e há de se dar crédito para os coadjuvantes Jordan Gavaris e Maria Doyle Kennedy, só pela virtude de não ficarem comendo poeira perto de sua coestrela) com uma consideração profunda sobre temas fundamentais. Orphan Black, da forma como chegou ao seu final, é uma série sobre o próprio conceito de propriedade, como ele está enraizado na nossa organização social, e especialmente como ele age sobre as mulheres e seus corpos. É um tratado inteligente, assustadoramente compreensivo e, por vezes, dilacerantemente doloroso, daquilo que comumente se chama de opressão estrutural.

Raramente, na TV, observamos mulheres que desenharam histórias de liberação tão complicadas, e as clones de Maslany pintam um retrato muito completo das muitas reações, cicatrizes e atitudes frente à opressão. São especialmente simbólicos os episódios da quinta temporada focados em Allison, a dona de casa suburbana; Helena, a garota criada em uma seita religiosa; e Rachel, que cresceu testemunhando em primeira mão o poder que outros (em suas representações maiores, sempre homens) tinham sobre seu destino e seu corpo.

Rachel, a clone "malvada" de Orphan Black
Rachel, a clone “malvada” de Orphan Black

Allison, ao final de seu episódio, chega a um ultimato de autenticidade, de liberação das neuroses causadas por um mundo que exigiu que ela estivesse sempre no controle, sempre ajustada em determinadas expectativas. Helena, talvez a figura mais trágica das sestras, se vê encarando de frente as marcas psicológicas deixadas por sua criação, os impulsos suicidas e a baixa autoestima que advém do seu tratamento como um objeto de abuso disfarçado de adoração. E Rachel, em seu final violento, se vê obrigada a perder (mais) um pedaço seu para se livrar daqueles que a oprimiram a vida toda, a quem ela quis tanto se aliar – se você visse que os monstros são livres, e você não, será que não ia querer ser um deles também?

Já que Orphan Black se aproxima de sua última semana entre nós, portanto, vale erguer um brinde a essa série que teve a coragem de fazer de uma mãe solteira e falha, sem laço romântico algum, sua principal heroína. À série que, ao mesmo tempo em que fez isso, reconheceu as multidões contidas no conceito de liberdade, e nas jornadas até ela. À série que, empurrada pela melhor atuação em TV da nossa era, conseguiu se tornar muito mais do que jamais ambicionou ser.

Assim como aconteceu cada uma das mulheres que Tatiana Maslany interpretou, a jornada de Orphan Black como obra de arte foi surpreendente, imperfeita e fascinante – mas, acima de qualquer coisa, vitoriosa.

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