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Crítica | Ela Quer Tudo – Temporada Completa

Spike Lee é um diretor que possui uma comunicação acessível e ao mesmo tempo, dura. Ela é maleável, se expande ao que o criador de filmes tão significativos como Faça a Coisa Certa, Febre da Selva e Malcolm X deseja e também sobre o conteúdo de suas obras. E elas sempre foram, são e serão o que Spike é. É o espelho da alma e da concepção do idealizador em meio aos temas que irrompeu sempre em sua filmografia consistente: o racismo, a emancipação individual e coletiva do negro e a política sob um viés marginalizado, minoritário. E de seus filmes, o primeiro, Ela Quer Tudo, de 1986, experimentou uma narrativa cômica e intimista.

E para trazer esse relacionamento de Spike com seu laboratório e temática – expressões importantes, cruas e necessárias – a uma forma de conteúdo mais popular e acessível, a Netflix deu liberdade para fazê-lo a série de dez episódios Ela Quer Tudo, baseada quase que integralmente na história narrada em sua estreia como diretor. E Spike, já em 1986, praticamente já havia em mente sua forma narrativa, de contar suas histórias completamente ricas e analíticas sobre o negro, sobre sua morada discriminada pelo racismo estrutural e social imposto, sua inflamável cultura e sobre como irromper mitos, transformando diversos aspectos em um senso mais comum.

A série acompanha a história de Nora Darling (DeWanda Wise), uma jovem mulher negra, artista e retratista, que possui relações sexuais com três homens, cada um com características distintas. Jamie Overstreet (Lyriq Bent) é o mais velho, rico, com nuances galantes e eloquentes, mas que o torna em um ser protetor e conversador; Greer Childs (Cleo Anthony) é atraente, ousado e vaidoso, porém, arrogante e egoísta; e outro é Mars Blackmon (Anthony Ramos), o mais jovem. Engraçado, ativo e dinâmico. Mas imaturo e não sabe lidar com questões que exigem de mais paciência e sabedoria. Estes três são parte da vida de Nora, mesmo que Nora faça por garantir que é independente e alheia aos relacionamentos. Afinal, a mulher negra livre não está somente interligada com a forma com se vê em meio das outras pessoas, mas também como se percebe como é.

A série percorre seus dez episódios mudando formatos. Na maior parte do tempo, a direção e a câmera de Lee se molda no que já é de praxe: um movimento mais forte e rápido, transmitindo uma sensação de dinamismo e percepção em grupo. Porém, há momentos em que a série assume outra identidade de Lee: o estilo documental. Sequências onde os personagens falam diretamente ou indiretamente para a câmera, quebrando a quarta parede. Esse típico meio de comunicação dá embasamento às características mais pessoais e singulares de cada um, mas também são elos que conectam com a vontade de Spike. A comunicação feita de uma forma mais intimista e informal quebra uma suave frieza no tom que a série assume, e torna o público ativo dentro daquele processo de estudo, de aprendizado envolvendo todas as questões mais externas à produção.

Situada em Brooklyn, um dos bairros famosos de Nova York, a ambientação como sempre é outro ponto forte do exercício contracultural que Spike gosta de imprimir em suas obras. Não apenas para destacar uma energia local, mas para usá-la a ponto de direcionar a miscigenação, o deslocamento causado por conta de questões étnicas e sociais. Seu filme mais recente, Chi-Raq, usou a cidade de Chicago para elaborar os conflitos em meio a temáticas latentes na sociedade. E claro que Ela Quer Tudo também há esses pequenos fechos de pontuação civil. Não que séries e filmes debatendo racismo, exotização da mulher negra e estudos demográficos e outros atenuantes seja desvalorizado em meio ao conteúdo narrativo próprio. Em fato, a série escrita e dirigida por Lee concentra um poder e uma manifestação explícita ao mesclar esses núcleos. Nada se perde ao dar espaço para que o outro ganhe mais espaço. Afinal, espaço – pode-se entender representatividade – do negro na arte, na cultura como geral e dentro de sua própria liberdade é a via por onde os dez episódios são contados.

A história de Nora, e não querendo fazer comparações com o filme, ´da um senso de urgência para suas apreensões e visualizações. Das expectativas com a profissão, com seu lugar na cultural e na forma com enxerga o relacionamento e toda a possível carga de comprometimento que é ligado junto. E como é difícil escapar quando os homens ainda estão inertes aos conceitos patriarcais; da posse, dos ideais machistas sobre a vestimenta e o comportamento da mulher, mesmo que haja nenhuma sinalização de comprometimento. A personagem principal expõe com precisão todas as problemáticas envolvidas em sua particular jornada, dando a entender que sua caracterização foi feita a partir de outras mulheres negras envolvidas na produção. Alguns episódios foram escritos por elas, como Radha Blank e Lynn Nottage, abordando essas particularidades da mulher negra e sua liberdade, sua manifestação e força contra o racismo e objetificação.

A fundamentação, a mensagem e as motivações que levaram Spike Lee a “reprisar” Ela Quer Tudo, apesar de serem em aspecto geral as mesmas envoltas na produção original, se transformaram com o passar de 3 décadas. E isso coloca esses debates cada vez mais em uma posição necessária, de merecimento. Em caráter técnico e social, em forma e conteúdo, Ela Quer Tudo é iminente e muito além de uma espécie de re-imaginação. É um processo um pouco diferente de contar as histórias tão bem ditas de maneira crua, sensível e incisiva de Lee.

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