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O Justiceiro | Crítica - 1ª temporada completa

É interessante perceber os caminhos propostos pelas produções televisivas da Marvel, uma busca bastante visível pela singularidade de seus heróis e como essas características podem se combinar numa série como Os Defensores. Assim, o caso fica ainda mais interessante ao analisar O Justiceiro, a mais recente produção do estúdio em parceira com a Netflix. Esse fator é alcançado de tal forma na série que quase não se identifica as características do gênero de super-herói ao longo da produção. O Justiceiro leva essa questão da singularidade ao extremo, sendo o máximo que uma produção solo poderia propor. Em tempos que o fan service é necessário, que mostrar-se parte de um universo expandido é fundamental para seu sucesso, O Justiceiro faz questão de focar em seu protagonista e criar seu universo particular.

Assim, é curioso como a primeira temporada de O Justiceiro evita a já consagrada trama de origem, até porque o próprio protagonista não se vê como herói, fazendo da série uma investigação profunda de quem realmente é aquele personagem. O Justiceiro é a figura menos heroica do universo e provavelmente a mais humana. Em poucos minutos do episódio inaugural revelam quem é Frank Castle (Jon Bernthal) e sua função como Justiceiro, ou como realmente passou a ser chamado pelo seu alter ego, após liquidar grandes criminosos de sua cidade. A série concentra-se num momento posterior a esse, visando como Castle sobrevive após tudo o que passou, um homem que vive como um fantasma provindo de duas guerras, uma nos campos de batalha do Oriente Médio e outra nas ruas dos EUA.

A trama se organiza em torno de um vídeo vazado, onde um grupo de elite do exército promove uma queima de arquivo, assassinando uma importante testemunha em algum lugar do Oriente Médio. A grande questão é que Castle estava envolvido naqueles fatos e o homem buscará todos os participantes daquele vídeo, principalmente a organização paramilitar que fez com que ele e outros homens estivessem inseridos em uma missão duvidosa em termos éticos.

Assim, essa missão do Justiceiro revela uma conexão profunda entre seus desafios externos com seus dramas internos, a narrativa da série é uma espécie de retirada dos pontos de uma ferida profunda, que resiste em não cicatrizar. A série causa o envolvimento profundo com a figura de Castle e com o ser que ele realmente é. Não apenas um herói enfrentando os mais diversos desafios, algo que não combinaria com as propostas de O Justiceiro.

O que dá a tônica da série é justamente uma busca extrema por um realismo, algo que retira a produção ainda mais do estigma do gênero de super-herói. O Justiceiro parece muito mais com os recentes exemplares de filmes de ação, algo que permeia o audiovisual americano desde O Dia de Treinamento e títulos similares. A série almeja uma aproximação dos conflitos existentes na trama com aquilo que se vê nos jornais, conferindo um inevitável peso em relação àquilo que se vê. Algo muito evidente no trabalho de câmera, que se recusa a utilizar a óbvia câmera na mão, mas utiliza um ruído característico das câmeras digitais, movimentos um tanto quanto nada premeditados, enquadramentos pouco trabalhados, algo que faz com que O Justiceiro se aproxime de uma encenação próxima a uma filmagem despojada, sem preparação, próximo aos registros digitais despretensiosos.

A série, assim, constitui um retrato ousado de um super-herói, até porque esse realismo não funciona apenas para promover uma maior adesão psicológica com o espectador. O Justiceiro faz com que sua busca pelo real conecte seu público com temas realmente relevantes, o mais interessante é que as cicatrizes de Frank Castle são as mesmas feridas de um recente processo sócio-político americano. Dessa forma, uma simples série de super-herói que compõem um variado quadro da Marvel toca temas espinhosos como as leis anti-armas, o envolvimento dos EUA nas guerras do Oriente Médio, o perigoso discurso do “make america great again” e o desenvolvimento e participação de grupos paramilitares formados por ex-combatentes nos mais variados serviços.

Esses temas são realmente feridas sentidas pelos personagens, todas as figuras presentes na ficção provêm desses arranjos sociais, seja no companheiro de Frank, um hacker envolvido nas grandes empresas de inteligência do país; seja na figura da agente federal Madani que contra toda cúpula do FBI, peita os grandes arranjos corruptos condescendentes à violência dos grupos paramilitares; até o grande vilão da série Billy Russo que lucra com a paranoia de eterna guerra ao terror. E principalmente, em um dos arcos mais interessante da série, onde um homem comum, um ex-combatente se vê atormentado pelos fantasmas da guerra e invade essa trama da Marvel com a violência e o terror de um atentado real.

O Justiceiro é uma série onde ninguém está afastado desses problemas atuais, conscientemente evitando qualquer relação alheia a seu tempo histórico. Sente-se o peso dessas cicatrizes em todas as personagens. Algo que parece nunca ter solução, um peso que vai aumentando a cada episódio, uma configuração política que não cessa e assola ainda mais essas figuras. Aqui nada é tão preto no branco e a série revela mais uma dor por aqueles que passam por esses processos tão violentos, do que a busca para propor alguma solução. Uma série de super-herói em que seu inimigo principal encontra-se no mundo real.

A série faz questão de não apenas jogar esses temas em sua narrativa, mas demonstra uma construção bastante interessante, revelando aos poucos o peso desses fatos, O Justiceiro é uma obra que ganha corpo, que revela o drama além de uma produção de ação. Os treze episódios de quase uma hora são totalmente justificáveis, fazendo questão de adentrar no íntimo de suas figuras humanas, que vão se modificando e revelando sua verdadeira face ao longo da série. A consciência de O Justiceiro é impressionante e quando parece que já havia entregado tudo realizam um episódio central, em que os fatos são contados por diversos pontos narrativos, onde varias verdades são confrontadas, algo que valeria a série por si só, mostrando a ousadia de O Justiceiro.

Esse episódio, por exemplo, faz com que a série tome um rumo dinâmico impressionante que marca seus quatro últimos capítulos. O Justiceiro é uma série que constrói uma narrativa consciente e relevante, para nos momentos finais implodir tudo isso, fazendo com que as feridas sejam ainda mais expostas através da ação visceral da produção. Uma sociedade que praticamente se implode e O Justiceiro com seu realismo filma esse processo. Algo que chama atenção para o protagonista Jon Bernthal que não surpreende apenas pelo seu tipo físico, mas por encarnar em seu andar, em sua fala e em seu olhar esse peso de um mundo que desaba.

O Justiceiro tem seus pontos contras também, como a rendição em relação a alguns clichês. Por exemplo, os pesadelos em que Frank vê constantemente sua família sendo assassinada, uma vez que esse é um sentimento presente mesmo sem essas imagens. E principalmente a figura de Billy Russo, o vilão da série, o personagem mais chapado e menos humano, numa narrativa em que todas figuras são dúbias, ele é o único que não mostra ter dois lado. Algo que fica ainda mais notável vide o mal desempenho de seu intérprete, Ben Barnes, que abusa das caras e bocas, dando ainda menos credibilidade a um personagem não tão bem construído.

Talvez o ponto mais delicado de O Justiceiro encontre-se na violência da produção, totalmente gráfica, pautada pelo realismo que dá o tom da série, todavia esse combo de realidade mais cenas violentas resultam num perigoso sentimento de espetacularização daquilo que se vê. Há um sentimento de que realmente aquela violência vista ali corresponde aos fatos apresentados, é curioso como a série evoca dor e sofrimento ao tratar dos mais variados assuntos políticos e sociais, mas diverte-se com a violência gráfica que cria, como se não houvesse uma consciência de seu uso.

Entende-se que com isso os criadores buscavam fazer valer um sentimento presente nas histórias dessa personagem da Marvel, uma atmosfera adulta que faz com que aquele seja um herói muito mais alternativo. Realmente isso está presente na série O Justiceiro, uma narrativa totalmente alternativa daquelas vistas nos dois universos Marvel (televisivo ou cinematográfico) e se a violência é um problema nessa busca pela singularidade de seu personagem, O Justiceiro é um herói e uma série madura, consciente que consegue dar o devido peso aos fatos e tramas que aponta, uma produção com muito fôlego e personalidade.

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