Netflix

Crítica | O Mecanismo - 1ª Temporada

José Padilha tem uma longa escalada política em sua carreira como cineasta. Virou uma espécie de “especialista”, dito assim por quem analisa o cinema. Ele utiliza fatos recentes sociopolíticos nacionais e os adapta livremente. Assim com Ônibus 174, os dois Tropas de Elite e a recente série Mecanismo, que estreou nessa sexta-feira (23) na Netflix, produção original. Nessa, ele utiliza como base o livro Lava Jato: O juiz Sergio Moro e os bastidores da operação que abalou o Brasil e cria uma obra episódica com oito partes que remonta de uma maneira mais abrangente e didática a Operação Lava Jato e a sua importância política para o atual cenário no Congresso Nacional do Brasil.

O protagonista da série é Selton Mello, que interpreta o agente da Polícia Federal Marco Ruffo, que está investigando de maneira independente um esquema de lavagem de dinheiro envolvendo um doleiro, chamado de Roberto Ibrahim. Sua investigação, no entanto, não acontece por conta de um forte esquema de revés político que Ibrahim manipulou, colocando Ruffo fora da jogada por um tempo, até que Ibrahim fosse novamente investigado, dessa vez, como alvo da inicial Operação Lava Jato, que desvendou em suma, mas não totalmente, um forte esquema de propina e corrupção envolvendo políticos, donos de empresas estatais e empreiteiras. Supracitado, Padilha desenvolve por gosto obras de cunho político e contexto social e por isso, assume uma identidade enviesada e a insere dentro de suas narrativas sem premeditar uma reação. No entanto, ao aderir a esse ponto mais pessoal, o criador da série se apropria de um discurso próprio comum e parte em cima desse posto para configurar uma análise/crítica perante, como o nome da série viabiliza, o mecanismo que está intrínseco a atual conjuntura política.

Ao indicar que José Padilha entrega um tom pessoal, isso parte do pressuposto de suas próprias considerações sobre essa conjuntura e cenário político, feitas pelas entrevistas que deu para fazer a divulgação da série. E como constatado, ele segue duas vertentes tóxicas bastante conflitantes: ao mesmo que tempo que subestima seu público, entregando um texto insosso, óbvio e completamente fundado em canonizações de órgãos e determinadas fábulas e prerrogativas próprias sobre o esqueleto corrupto da política nacional, como por exemplo, fazer alusões de seus personagens às pessoas reais, como o ex-presidente Lula, o juiz Sérgio Moro e até mesmo o dono da Petrobras – que na série é chamada de Petrobrasil -, usando contextos semânticos de pura higienização e sustentação positivista para alguns e maleficiando outros. Claro que dados os fatos históricos, há de se saber quem possui culpa ou não sobre determinados crimes, mas esse tópico mais real é majoritariamente maquiado, sendo trocado por uma condução maniqueísta da leitura de senso comum.

Marco, o personagem de Selton, acresce uma interessante construção para a narrativa quando seu personagem está justamente distante dessa caçada e desses irrompes vingativos, partindo de uma constatação parcial. Ruffo é um policial complexo, duplamente complexo na verdade e que mostra essas características ao se montar com feitos da vida pessoal, como a perda de confiança da família e principalmente dos ex-colegas policias, sendo a mais fiel Verena (Carol Abras), a personagem com melhor construção narrativa de toda obra. Desfocalizada dessa cegueira parcial e emotiva, Verena coloca o dever como policial acima de qualquer coisa, mas sem se entregar para um foco de justiça dentro do sistema de análise popular. Ela é objetiva e tem em seus próprios motivos, um arquétipo estabelecido de maneira coerente, mesmo que às vezes tenha que se banhar para o texto enviesado, mais parecendo uma coqueluche do que é dito e interpretado como ações de um “cidadão de bem”.

Padilha tem uma mira bem comum dentro de suas últimas obras, mesmo que seja um interesse idealizador técnico. Sua câmera é quase documental, passando uma análise – nesse campo – mais objetiva e em segundo plano. O problema é que o próprio criador subverte esse contexto e passa a demonstrar uma subjetividade e uma clara manifestação própria para com os acontecimentos. Essa mira vermelha tem um nome bem claro: corruptos. A corrupção é identificada em O Mecanismo como um “câncer” (palavras de Ruffo, repercutidas por outros personagens), que se alastra se não for remediado logo de imediato. Claro que este não é uma simples doença, ela tem uma origem muito mais endêmica e anterior a toda esse recente conjuntura e por consequência, os desmembramentos das resoluções. Mas como a liberdade existente da série permitiu que ela focasse somente em um evento que, de fato, desequilibrou a política na Capital Federal, O Mecanismo tratou de idealizar um cenário de salvação e canonização dessas mesmas resoluções.

Algumas palavras de efeito utilizadas por personagens, como o próprio Marco e outros dentro da série, tentam dar à Operação um ar de revolução sistêmica dentro desse esquema. No entanto, as falhas começam justamente dentro desse discurso de desconsiderar um materialismo fatual para ser contraposto a uma iniciativa parcial. A todo momento, a narrativa de O Mecanismo tenta ser equilibrada com esse tom, buscando uma forma de se apresentar como isenta e imparcial, justamente para ser considerada apenas um retrato de evento histórico. Por tentar tanto, a série da Netflix constrói um pouco de seu caminho próprio mas é barrado quase logo em seguida por essa atenuação e constante idealização do cenário. Paulo Rigo (Otto Jr.) é a personificação do juiz em cheque e foco do livro, Sérgio Moro. A partir dessa apresentação, a obra poderia ser dissecada em dois seguimentos: mostrar a presença e os feitos do juiz de Curitiba em uma construção mais sóbria e fria ou o pondo em um altar santificado e o fazendo ser considerado uma espécie de justiceiro. Falha como uma representação dos fatos históricos recentes da política nacional e também falho ao não conseguir ser equilibrada no sentido de se abster de um viés.

Vale ressaltar que o cinema, o setor audiovisual nunca devem ser distantes da política, até porque ela não se resume à corrupção, feitorias para população ou viabilização partidária. A política é um valor histórico e social, que acompanha a sociedade de acordo com o rumo dela e por consequência, a cultura e as obras que são criadas por ela possuem essas considerações. No entanto, ao assumir um panfleto e uma identidade dentro dessas obras, a coerência necessariamente precisa ser estabelecida e um debate a ser criado e discutido à priori. Subestimar o público apresentando uma cartilha de ideias e apresentá-las como principal cerne e chave de uma questão política é atestar que foi falho em fazer essa construção periodista. Novamente, Padilha parece ser um criador de ideias turvas e que são analisadas como inconcebíveis e errôneas se não seguirem sua passionalidade e contestação singular.

Sair da versão mobile