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Crítica | Insatiable - 1ª temporada

Insatiable entrou na roda de assuntos da internet antes mesmo de sua estreia na Netflix, graças ao primeiro trailer indicando que a série traria uma história onde a protagonista perde peso repentinamente, e parte em uma jornada de vingança contra o mundo que a julgou quando estava fora do padrão. Muitos ficaram indignados com tal proposta da série, e até mesmo um abaixo-assinado (pedindo a sua retirada da grade lançamentos) começou a rodar por aí.

A polêmica envolvendo “fat-shaming”, no entanto, fica em segundo plano perto da bagunça colossal que é o roteiro de Insatiable. Por um lado, a série se apoia constantemente na sátira, na ironia e no exagero, adotando um tom mais leve e descompromissado com suas situações absurdas. Por outro, também quer ser um drama adolescente de conscientização, abordando temas polêmicos e lidando com seus personagens com seriedade. Com guinadas bruscas para ambos os lados há todo momento, a série acaba não conseguindo se encontrar em nenhum dos dois.

Outro balanceamento falho que pode ser observado no roteiro da série está em sua estrutura. Como a grande maioria das produções da Netflix, Insatiable é feita para ser consumida conforme o ritmo que o espectador desejar, o que sempre inclui a facilidade de maratonar, por exemplo. Mas a trama não se desenvolve de maneira cadenciada pelos episódios como seria Demolidor ou Orange is the New Black. Embora hajam alguns arcos narrativos que abrangem a temporada como um todo, eles são pouco satisfatórios ou engajantes, e acabam deixando a atenção do espectador para tramas e arcos secundários, contidos em um ou dois episódios.

A série começa querendo tratar sobre bullying em um núcleo (a protagonista Patty, vivida Debby Ryan) e abuso sexual em outro (o outro protagonista, Bob, vivido por Dallas Roberts). Vai desenvolvendo estes temas nos primeiros episódios, tratando da auto-consciência sobre o corpo, os dilemas das denúncias de abuso sexual, e relações consensuais com menores (algo que acaba abordando de maneira descompromissada, e beira a banalização irresponsável). Em seguida, quer falar sobre identidade sexual na adolescência, mas deixa esta trama restrita à clichês.

Alguns episódios adentro, mais um pouco de exposição dos valores da série sobre padrões de beleza, perspectiva religiosa, e começamos a falar sobre realização pessoal. Em meio à este tópico, balanceando seus sentimentos e interesses entre dois garotos diferentes, a personagem acaba ficando gravida, e a série se propõe a discutir a polêmica do aborto. A discussão dura pouco, deixa pelo caminho alguns argumentos já batidos sobre o assunto, afirma sua posição, e então a personagem não está mais grávida. Era, na verdade, um demônio dentro de seu corpo.

O demônio, na verdade, era sua irmã gêmea que foi “consumida” no útero, aparentemente revoltada por nunca ter nascido, e responsável pelos males da vida da protagonista. Com direito a uma cena de sessão espírita, e uma cena de exorcismo, o demônio/irmã gêmea é “derrotado”, e agora é hora de falarmos sobre pressão social, valores morais, ciúmes abusivo e identidade sexual (de novo ,mas desta vez, com o outro protagonista). Como se já não bastasse essa colossal mistura de propostas superficiais, a série ainda decide, no último episódio, que não quer mais ser satírica ou um drama consciente, mas sim um suspense melodramático nos moldes de Riverdale.

Todos estes distintos temas vão sendo trazidos à tona com pouca organicidade e pouca coerência. Os protagonistas vão sendo levados por entre estas diferentes circunstâncias, mas não apresentam consistência ou justificativa palpável em suas decisões, episódio por episódio. Também não são construídos com traços empáticos suficientes para que o espectador consiga se identificar com as lógicas e resoluções que vão sendo colocadas para dar continuidade à história.

Personagens que não possuem falhas não costumam ser personagens interessantes. Patty tem muitas falhas, e muito espaço para crescer dentro da série, mas não consigo identificar nenhum motivo para acreditar em suas motivações ou empatizar com suas perspectivas simplesmente pela exposição de suas falhas. É necessário um elemento que torne a personagem admirável, em algum sentido. Ao invés disso, preferem manter o interesse do espectador na sua imprevisibilidade. Essa imprevisibilidade, no entanto, não atinge os resultados deslumbrantes que almeja, e só adiciona à sensação de desorganização que a série traz (Patty queria conquistar o coração de Bob no começo da temporada, mas esta trama já parece estar há anos-luz quando a temporada se encerra. Não há consistência).

Esta inconsistência é ilustrada perfeitamente pela dinâmica dos dois personagens chamados Bob. No começo, são estabelecidos como grandes rivais, com o protagonista enxergando o antagonista como um reflexo invertido seu. Ambos não se suportam, até que o antagonista revela repentinamente sua homossexualidade, e atrai o protagonista para um caso amoroso. Em poucos episódios, os antigos rivais tornam-se um casal perdidamente apaixonado e bem resolvido, cujo novo drama, agora, é incluir a ex-esposa na relação. Muita evolução, pouco tempo.

Falta apreço pela trajetória destes personagens e de suas realizações. Tal qual a falta de tato que o roteiro demonstra ter com cada assunto debatível que resolve abordar, também pode-se observar a mesma falha com os momentos de sarcasmo ou exagero cômico da série. às vezes são problemas de direção, com a cena não proporcionando o foco e o impacto necessário para a piada funcionar. E às vezes, o texto é que realmente deixa a desejar na inventividade. São intenções boas, mas perdidas em meio à diálogos demasiadamente superficiais.

Os paralelos entre os dos protagonistas são explícitos demais para gerar qualquer reflexão, e nem sempre coerentes. Insatiable quer mostrar que todas as pessoas sofrem com a pressão social, com pressão interior, abusam e são abusadas de acordo com a sua circunstância. Mas na verdade, acaba gritando muitas coisas, sem dizer nada.

Repleta de tramas e arcos narrativos de pouca relevância, Insatiable pelo menos é uma série que não cai na monotonia. Se houver alguém apelo ao espectador, durante os primeiros episódios, que me escapa, é provável que este consiga terminar a série sem muito esforço. Mas no fim, toda a polêmica sobre a série pode ser, sim, justificada, e ainda ir além. É justamente por isso que sempre é melhor esperar pra ver a série antes de reclamar: às vezes, pode ser pior do que imaginávamos.

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