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Alias Grace | Crítica - Temporada completa

Margaret Atwood é uma das mais renomadas artistas vivas. Seus romances, além de utilizar da linguagem romancista e poética, narram acontecimentos que expõem características denotativas da sociedade escrita em questão. Não obstante que seu livro mais famoso, “O Conto da Aia”, de 1985, foi adaptada para uma série de televisão, se tornando um gigantesco sucesso de crítica e público e ganhando cinco prêmios Emmy neste ano, inclusive de melhor série de drama, sob o nome de The Handmaid’s Tale.

No entanto, a constante admiração por produtores de televisão por Margaret não ficaria somente nisso. Nesta sexta-feira (3), estreou Alias Grace, nova minissérie original da Netflix e adaptação homônima roteirizada por Sarah Polley, do romance lançado em 1996 por Atwood. E é notável perceber como a identificação e um ponto de vista feminino cooperou a manter essa perspectiva e espaço dentro da narrativa. Em 6 capítulos, vemos Grace Marks (Sarah Gadon) sendo consultada por Simon Jordan, um médico psicanalista (na época esta terminologia ainda não era difundida no academicismo medicinal), buscando entender suas motivações que a levaram a assassinar Nancy Montgomery (Anna Paquin) e Thomas Kinnear (Paul Gross), em cumplicio com James McDermott (Kerr Logan), para que possa atestar um relatório de insanidade para assim, liberá-la da pena de prisão perpétua.

Os seis episódios da série criam uma divisão narrativa de três partes. Três importantes eventos na vida da personagem principal, cada um deles originando, determinando e sucedendo suas características ao longo da minissérie. Primeiramente, as ambientações – seja pelo design de produção, figurino e contexto histórico – permitem que a percepção do tempo-espaço aconteça rapidamente, com facilidade, mas de maneira gradual, fazendo com que o tempo não acelere e nem fique estagnado em determinadas situações. A primeira parte disseca sua criação e infância. A este ponto inicial, uma das características da produção, valendo-se pela fidelidade à história original, é a ilustração de graves problemas sociais. Se passando no Canadá do século XIX, a natureza das classes sociais é vil com os menos favorecidos e principalmente com as mulheres.

Situando-se nesta camada alegórica, esticam-se pontos narrativos a respeito da misoginia e de manifestações religiosas. A minissérie inteira possui nuances sobre espiritualidade e como a filosofia e a medicina até então questionavam estes fenômenos, sejam eles providos pelo protestantismo ou pelo catolicismo. Nos primeiros dois episódios, se vê em Grace uma inocência e purismo ditados até como nocivos a si mesma, para as situações que enfrentam, porém, impondo que isto a fez se questionar depois de uma própria avaliação.

O segundo ato evolui não somente ao introduzir personagens novos e talhar afirmações sobre Grace. Diz muito também sobre como a aristocracia até então predominante atuava em todas as esferas possíveis. Politicamente, economicamente e socialmente. A este ponto, Grace é adolescente e inicia sua jornada de autoconhecimento e adquire uma forte indagação e curiosidade. Estas características são catalisadas ao conhecer e ficar amiga de Mary Whitney (Rebecca Liddiard), uma empregada doméstica mais velha e mais experiente. Aliás, estes contrastes entre as personagens desenvolve a melhor relação da minissérie, sucedendo momentos de grandes atuações e um núcleo narrativo poderoso no que cerne a outro evento traumatizante da vida de Grace. A partir deste evento, Alias Grace utiliza mais alegorias e parábolas sobre uma espécie de harmonia existente entre elas, como se uma fortalecesse a outra. Além da inclusão dos questionamentos sobre espiritualidade, credos e fundamentações clínicas.

No terceiro e último ato – os dois últimos episódios – concentra-se em chegar ao clímax e potencializar a discussão própria da obra: como adquirir a verdade em uma realidade que está cada vez mais distante, mesmo que próxima em sua superfície. O principal cenário da minissérie é o cômodo onde Grace e Dr. Jordan conversam e este tenta, em uma espécie de regressão ao passado, o que se caracteriza muito na forma da psicanálise, entender todos os momentos passados importante da vida do paciente e buscando conexões com as características atuais e possíveis problemas diagnosticados, fazendo uma interligação. Dr. Jordan precisa ser convicto ao afirmar que Grace agiu por insanidade e assim, condicioná-la à liberdade. É pressionado por uma Comissão com fundamentos holísticos e religiosos, liderada pelo Reverendo Verringer (uma participação excepcional e surpreendente do diretor David Cronenberg, que fez filmes como Videodrome, A Mosca, Marcas da Violência, entre outros), além de conviver internamente com suas impressões e sentimentos pela jovem.

Durante toda a minissérie, a contextualização e utilização de planos de fundo sob a forma da religião, do gênero e de classes socais é predominante. A todo momento esses pontos são difundidos e inseridos no roteiro cuja finalidade é a verossimilhança com os contratos e normas sócias da época. Se vê sempre como o patriarcado é protegido, instaurado e maléfico às mulheres, até mesmo dentro do que tange à legislação. Isso conduz uma perspectiva interessante e importante dentro de uma classificação social, no entanto, há certos exageros e maniqueísmos que, por mais que tenham um objetivo de circundar essas questões e fazê-las de entendimento comum, soa cansativo e expositivo dentro de sua narrativa. O segundo até é o mais equilibrado de todos justamente por não permitir que esses elos, essas pequenas pontas prevalecem sobre o principal foco até então.

Não há tantos simbolismos e percepções complexas. Talvez demande um certo estudo do escopo dos livros de Margaret Atwood, mas nada que forneça uma compreensão muito subjetiva. Pelo contrário, Alias Grace é objetivo e coerente em sua proposta narrativa. As personagens do núcleo principal são ótimas, muito bem estruturadas e atuadas, limitando um espaço para suas relações e conexões aconteçam dentro de um evento necessitado dessas interações. Há um pequeno desperdício e momentos de caricatura na personagem de Anna Paquin, não por conta da atuação, mas Nancy ganha um palco no último ato que desconversa com suas motivações até então denotadas.

Em quesitos técnicos, a produção salta os olhos pelo cuidado que teve na reprodução daquela época através dos figurinos, dos ambientes – os mais singulares e fechados até os mais abertos e públicos –, da contextualização jurídica até então que o roteiro tratou de forma cautelosa e procedural. A fotografia se baseia muito nos tons mais frios e sujos quando quer representar momentos mais tristes e violentos e uma paleta mais viva quando se permite falar da felicidade da personagem principal. Quando há cenas noturnas, a maioria delas situadas em sonhos, credito que o flerte com o terror e o sobrenatural tenha sido feito da forma como foi pela influência de Cronemberg, mesmo que suas principais forças motrizes em seus filmes não sejam presentes. Mas os delírios e as situações ambíguas criam um aspecto mais imersivo.

Alias Grace é outra ótima adaptação de Margaret Atwood. Baseada em fatos, a obra original está em uma crua e intuitiva recontagem, situada em uma montagem narrativa bem orgânica, que contou com uma excelente produção e execução de roteiro de Sarah Polley, pois não somente se deu voz a como se olha para as comoções e motivações de uma mulher, mas também a sua forma de enxergar o que há de moral, belo, ridículo e importante nas relações entre as pessoas e em sua jornada própria.

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