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Dilema, da Netflix, cometeu o mesmo erro que Game of Thrones

Um assunto muito discutido na industria de Hollywood atualmente é o tratamento de suas personagens femininas. Particularmente, quando as histórias envolvem violência, submissão e relacionamentos complicados com figuras do sexo oposto, algo que acontece com frequência quando a maioria dos roteiristas são homens. Recentemente, a temporada final de Game of Thrones foi acusada desse equívoco, e o mesmo acontece com Dilema, nova série de antologia original da Netflix.

A comparação é evidente. Na criticada oitava temporada de Game of Thrones, vimos algumas das personagens femininas mais admiradas receberem um tratamento curioso. Brienne de Tarth baixou a guarda e acabou chorando pelo amor de Jaime Lannister em um de seus momentos finais (abandonando a postura que a maioria dos fãs admiravam na cavaleira de Gwendoline Christie), Daenerys Targaryen foi convertida a uma vilã sem coração com uma simples apertada de botão e, principalmente, o roteiro da série usou o estupro como formação de caráter de Sansa Stark – algo que é abominado por diversas mulheres presentes na indústria audiovisual, e que realmente não deveria ser um simples artifício de roteiro.

O Passarinho de Sansa

Na cena em questão, Sansa diz que não seria quem ela é “sem Mindinho ou Ramsay Bolton”, dois personagens que abusaram psicologicamente e sexualmente da jovem Stark. De um certo ponto de vista, especialmente das críticas, fica a impressão de que a mulher “precisa ser estuprada para ser forte”, o que justifica a problematização em cima da fala de Sansa, que aconteceu no episódio “The Last of the Starks”, onde ela diz que “teria permanecido um passarinho para sempre”. 

Uma das vozes mais fortes do movimento feminista em Hollywood, Jessica Chastain criticou duramente essa fala. Principalmente por ter trabalhado com Sophie Turner em X-Men: Fênix Negra, a atriz foi vocal durante a exibição do episódio, escrevendo em seu Twitter que “Estupro não é uma ferramenta para tornar uma personagem forte. Uma mulher não precisa ser vitimizada para se tornar uma borboleta. A ‘passarinho’ sempre foi uma fênix. A força prevalente é puramente dela, e só dela”, escreveu Chastain durante a semana de exibição, além de já ter comentado diversas vezes que já recusou inúmeros papéis na indústria que usavam desse mesmo artifício em relação a violência sexual como dispositivo de desenvolvimento de personagem.

O segredo de Anne

O que nos leva, finalmente, à série Dilema. Nem precisamos avisar de spoilers, mas o episódio final da antologia revela que todo o segredo da narrativa envolve as consequências de um estupro, e a forma radical como transformou a protagonista Anne Montgomery – vivida por Renée Zellweger. Descrita como uma executiva agressiva, capitalista e fria, ela começa a se aproximar de Lisa (Jane Levy) com intenções misteriosas e que demonstram sua grande ambição.

A grande revelação chega no final de Dilema, quando descobrimos que Lisa é a filha de Anne, e que ela foi nascida de um estupro. Quando jovem, Anne foi atacada e estuprada por um supervisor em seu apartamento, traumatizando-a e engravidando-a. Esse ataque mudou Anne, e ela mesmo descreve – de forma similar ao discurso do “passarinho” de Sansa – que ela “simplesmente construiu uma nova vida para substituir a garota que aquele homem destruiu; uma nova pessoa nasceu da força que eu ganhei ao absorver aquela lição, ao invés de sucumbir a ela”.

É mais um exemplo de como a força de Anne veio apenas através da violência sexual. É certo de que os roteiristas de Dilema provavelmente pensavam em mostrar que a personagem preferiu não se afundar após o trauma, mas sim sair com algo diferente e mais forte após a experiência. O fator problematizador é justamente por ela precisar desse trauma, e da interferência negativa de um homem, para engatar uma força que teoricamente já deveria existir.

São questões presentes tanto em Dilema quanto na temporada final de Game of Thrones, mas que na realidade estão espalhadas por todo o audiovisual; cinema e televisão. Com a inclusão de mais mulheres nas funções criativas, é uma questão que tende a ser melhor trabalhada com o passar dos anos.

Mas que não deve ser uma mera muleta de roteiro.

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