Durante os seis anos de Game of Thrones até agora, a série da HBO falhou com suas mulheres em muitos sentidos. Especialmente, é claro, com a recorrência de cenas de violência sexual em que o foco permanecia firmemente nos homens da história, ao invés de explorar o trauma e as consequências para elas como personagens. O que David Benioff e D.B. Weiss não fizeram, no entanto, e nem poderiam se quisessem honrar a obra de George R.R. Martin, é criar personagens femininas unidimensionais.
Ao conjurar essas mulheres complexas, cujos debates íntimos sobre poder, opressão, tempo e crença são tão fundamentais para o próprio cerne da série em que estão incluídas, Game of Thrones colocou o espectador na desconfortável posição de aceita-las por suas falhas, em uma paisagem de ficção em que as personagens femininas ainda são frequentemente estereótipos que passam por uma “sofisticação” para serem palatáveis ao espectador médio contemporâneo. Ao invés de fazer isso, talvez previsivelmente, o público constantemente busca, à despeito da própria série, correr de volta aos lugares familiares em que aprendemos a colocar as mulheres da nossa ficção, especialmente da fantasia.
Com a sétima temporada se aproximando, talvez seja uma missão nobre a de devolver nuance e ambiguidade a essas mulheres. Afinal, nuance e ambiguidade são as próprias rochas nas quais o brilhantismo de Game of Thrones é fundado, e perde-las em qualquer sentido seria um desserviço a um dos pedaços de cultura pop mais importantes da nossa época. Jaime, Tyrion, Sandor Clegane (o Cão de Caça) e até Jon Snow ganham o benefício dessa nuance, passando por jornadas de redenção, paixão e redefinição pela série. Enquanto isso, nenhuma oposição diz mais sobre a forma como enxergamos as mulheres em Game of Thrones do que aquela entre Cersei Lannister e Daenerys Targaryen.
Cara…
Cersei, atual soberana dos Sete Reinos, é uma “rainha gelada” virada de cabeça para baixo. O estereótipo da mulher fria e calculista ganha um novo e paradoxal fogo na construção da personagem, e na atuação carregada de desdém, mas também muita sutileza e entrelinhas, de Lena Headey. Sua ambição e apego ao poder não advém de um coração de pedra, mas justamente do contrário: uma paixão sem medida e um sentimento de vingança e justiça que não é inteiramente mal-colocado.
Quando Cersei explode Grande Septo de Baelor no final da sexta temporada, quem ela mata, de verdade? Centenas de inocentes, provavelmente, seguidores fiéis que não sabem das falcatruas rolando por trás da ordem do hipócrita Alto Pardal. Mata também fanáticos religiosos e ardilosos estrategistas políticos que se preparavam para apunhala-la pelas costas, ou a odiavam por aquilo que julgavam um pecado: trair seu marido, o rei Robert, com seu próprio irmão Jaime, e ter com ele três filhos bastardos.
https://www.youtube.com/watch?v=CY5As-RP1MM
Vale parar e analisar a história desse casamento real, no entanto. Robert era apaixonado por Lyanna Stark, que morreu nos momentos finais da rebelião arguida por ele para retirá-la das garras dos Targaryen. Em uma cena ainda insuperável da primeira temporada da série, talvez meu diálogo preferido de Game of Thrones, Cersei pergunta ao rei, seu marido, após confessar que um dia o amou: “Já foi possível para nós? Houve sequer um tempo, um momento, em que poderíamos ter dado certo?”. “Não”, responde Robert.
Há algo de trágico no arco de ambos esses personagens, mas por algum motivo (*cof cof* machismo *cof cof*) apenas a tragédia de Robert é reconhecida pela maioria dos fãs de Game of Thrones. Preso a um amor perdido há muito tempo, o rei vive uma vida miserável se afogando em bebida e prostitutas, e desempenhando um papel burocrático que ele despreza. Presa a um longo e infeliz casamento, a rainha se vê incapaz de exercer qualquer poder sob a sombra do marido, incapaz de submergir suas mágoas da mesma forma que ele, e se volta para aquele que estava mais perto dela, seu único aliado visível, a fim de um alívio: o fato de que essa pessoa era seu irmão, Jaime, ele mesmo desdenhado por um povo incapaz de agradecê-lo por salvá-los de um rei louco, é mera coincidência. Jaime não é o grande amor da vida de Cersei, mas é seu salva-vidas.
…Coroa…
Do outro lado do Mar Estreito, mora a suposta última descendente da linhagem Targaryen, a jovem Daenerys. Quando a conhecemos, na 1ª temporada, ela é vendida a um marido que a trata selvagemente, e após uma daquelas ocasiões em que Game of Thrones tem o equivocadíssimo instinto de fazer suas personagens se apaixonarem por seus estupradores, acaba passando por uma série de provações em uma das mais politicamente carregadas histórias da série.
Ao final da sexta temporada, e é curioso começar a desenhar paralelos com a jornada de Cersei a partir daqui, Daenerys e seus dragões queimam os navios dos escravocratas que cercam Meereen e exigem que ela entregue a cidade de volta para que os “antigos costumes” sejam restaurados. A série é muito esperta ao não tentar esconder as entrelinhas políticas da história de Daenerys – ela se vê como uma libertadora justa dos menos favorecidos, e retalia violentamente contra aqueles que se opõem a ela, ou ao seu senso de justiça. Acaba com um povo revoltado em suas mãos.
https://www.youtube.com/watch?v=2X8Wb0f9-rY
Quem Daenerys matou no final da sexta temporada? Centenas de soldados e escravos inocentes, provavelmente, cegados pela ilusão de que estavam do lado certo da história ou simplesmente de mãos atadas para se revoltar contra seus mestres. Matou também exploradores incansáveis de trabalho escravo que não aceitavam que sua época havia acabado, e buscavam restaurar os abusos que perpetuavam antes da chegada da soberana Targaryen e seus lagartos alados poderosos. “Mandou uma mensagem”. Justiça por exemplo e através do fogo – como a de Cersei, a um continente de distância.
Com todos os seus exércitos, aliados e criaturas mágicas, a jovem Daenerys retorna para Westeros na vindoura sétima temporada, a fim de conquistar o Trono de Ferro como promete desde o começo da série. “Como você faz uma guerra ficar interessante quando um lado dela tem dragões? Daenerys tem as armas nucleares”, brincou o roteirista Bryan Cogman recentemente, em entrevista. Talvez a resposta seja que você a faz interessante ao traçar rotas de colisão entre personagens, e não exércitos – para isso, no entanto, precisamos fazer exatamente o que esse texto vem tentando até aqui: devolver nuance e complexidade a elas frente a um público que se recusa a reconhecê-las.
…E a diferença
Traçando a jornada de Cersei e Daenerys, e depois delas as de Sansa, Arya, Yara e Brienne, fica claro que devemos mais atenção e sutileza a essas mulheres, e observar como o público responde a elas é especialmente fascinante. Se Cersei é vista como vilã, porque Daenerys também não é? A chave está na forma como David Benioff e D.B. Weiss construíram as personalidades de ambas, atribuindo a uma a dureza e arrogância típicas do anti-herói, e à outra a suavidade, dúvida e arco de crescimento típicos da heroína.
Parece cruel reduzir nossa percepção da ficção como sociedade a algo tão raso, mas é cruel apenas porque é verdade. Arya também escolheu a violência quando sua família e sua própria dignidade foram tiradas dela muito cedo – porque a vemos lutando com sua identidade, e porque a observamos crescer em tela, a recebemos melhor do que instintivamente recebemos Cersei, uma mulher formada e segura, cujo desprezo por todos a sua volta é mera resposta ao mesmo sentimento deles por ela. No decorrer da série, Daenerys batalha com seu senso de justiça, suas ambições de “quebrar a roda” ao invés de pará-la ou reinventá-la.
No fim das contas, as três personagens, e tantas outras mulheres em Game of Thrones, recorrem a uma retaliação física das opressões que sofreram porque foram ensinadas que essa é a única maneira de impor sua vontade em um mundo dominado por homens que tiraram delas seus próprios ideais, suas próprias identidades. Quando Daenerys finalmente ficar face a face com Cersei, talvez isso fique mais claro na cabeça de quem assiste Game of Thrones com verdadeira atenção: elas não são opostos – são assustadoramente, tragicamente iguais.