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Crítica | The Good Doctor

A televisão já nos entregou alguns grandes exemplos de séries sobre médicos, indo desde o clássico E.R. (ou Plantão Médico), até a longeva Grey’s Anatomy. Ainda que cada uma dessas tenha suas diferentes abordagens, certos elementos, como o melodrama, o foco nas relações amorosas entre os médicos, dentre outros, podem ser destacados como pontos chave de tais seriados.

Infelizmente, graças à superutilização de alguns desses pontos, muitos deles podem ser percebidos como clichês, o que acaba, invariavelmente, afligindo The Good Doctor, mais nova obra de David Shore, criador de House.

Não ajuda muito o fato de que essa nova série também traz elementos particulares muito similares à mencionada Dr. House, principalmente no que tange seu protagonista, que traz certas idiossincrasias, que o tornam essencialmente diferente daqueles ao seu redor. A diferença é que House era peculiar graças à sua persona, enquanto que o Dr. Shaun Murphy (Freddie Highmore), protagonista de The Good Doctor, assim o é em razão de seu autismo, algo que os roteiros desses dois primeiros episódios do seriado – Burnt Food e Mount Rushmore – fazem questão de nos lembrar a todo e qualquer momento, por mais que a interpretação de Highmore já dê conta do recado.

Sim, trata-se de uma adaptação da série Sul-Coreana de mesmo nome, mas o simples fato de Shore estar envolvido com o projeto, que traz muito em comum com sua série médica anterior, já levanta questões sobre a originalidade do projeto.

Antes de entrarmos em mais detalhes, no entanto, vamos à trama desses dois capítulos inaugurais de The Good Doctor.

Burnt Food, que dá início à série, nos apresenta o Dr. Murphy, que, a caminho do hospital, para sua entrevista de emprego, se depara com um acidente envolvendo um jovem garoto, em um aeroporto. Prontamente, o aspirante a cirurgião toma as rédeas do caso, no próprio saguão do local, estabilizando o paciente antes dele ser levado para o hospital, que, por acaso, é o mesmo para onde o protagonista deve ir.

Enquanto isso, o Dr. Aaron Glassman (Richard Schiff), diretor do hspital, advoga pela contratação de Murphy, quem conhece há anos, tendo de lutar contra as opiniões contrárias do restante da administração, particularmente contra o preconceito de que o jovem médico não seria capaz de desenvolver suas funções, apropriadamente, por ser autista.

Já o segundo episódio, Mount Rushmore, deixa clara a estrutura procedural da série, apresentando um novo problema médico, o tumor maligno de uma paciente, enquanto que Murphy é relegado a funções secundárias dentro do hospital, pelo chefe dos cirurgiões, que também não acredita no jovem. Enquanto acompanhamos essas histórias, também assistimos trechos de flashbacks da vida do protagonista, quando ainda era criança ou adolescente.

Um dos grandes problemas de The Good Doctor é que ele não faz nenhum esforço para tornar seu melodrama mais discreto – de fato, a série o amplifica através do constante e intrusivo uso da trilha sonora e dos próprios diálogos, que chegam a tentar inserir aspectos de imparcialidade, quando se trata da proficiência de Murphy, mas sem obter êxito. É natural que o cirurgião-chefe, o Dr. Neil Melendez (Nicholas Gonzalez) tenha preocupações sobre ter alguém com autismo em sua equipe, mas o seriado vende essa preocupação única e exclusivamente como preconceito.

Ao menos, nesses dois capítulos inaugurais, os roteiros mostram que Murphy não é exatamente perfeito. Sim, seus diagnósticos estão sempre certos, mas ele é péssimo em lidar com os pacientes, algo que afeta não apenas eles próprios, como todo o funcionamento do hospital (envolvendo desperdício de recursos e afins). Nesse quesito há um grande foco no contraste entre objetividade e emoção, algo deixado bem claro não somente pelo protagonista, com seus flashbacks, que diretamente dialogam com as situações nas quais ele se insere, como pelos dois outros residentes do hospital, a Dra. Claire Browne (Antonia Thomas) e o Dr. Jared Kalu (Chuku Modu).

Em Burnt Food, os dois claramente são colocados em oposição à objetividade do protagonista – eles contam com uma relação íntima, que não afeta necessariamente os seus trabalhos, mas contrasta com a dificuldade de Murphy em se relacionar. Esse assunto também se estende para outros personagens, como Melendez e Glassman, que também funcionam como representantes da razão e a emoção, respectivamente. Claro que esses são somente um dos aspectos que formam a personalidade desses personagens, com o tempo, como já foi mostrado nesses dois primeiros episódios, há de se esperar que eles se tornem mais complexos. Para um início de série, a relativa simplicidade funciona.

Infelizmente, enquanto há simplicidade nessa construção de personagens, não há na montagem e até mesmo no roteiro, principalmente no primeiro capítulo.

The Good Doctor tem um sério problema de ritmo em ambos os episódios, fruto de constantes vai e vem entre passado e presente, além do mal encadeamento de seus núcleos. Os flashbacks, que deveriam complementar uma situação do presente, muitas vezes não servem como algo mais do que pura encheção de linguiça e, nesses casos, nem mesmo servem para desenvolver o protagonista, já que lida cin características que já conhecemos no personagem.

A troca entre os núcleos também não ajuda e isso fica bastante evidente no primeiro episódio, no qual passamos conhecemos Browne e Kalu antes mesmo de Murphy chegar ao hospital, o que causa estranhamento imediato, por eles não serem apresentados sob a ótica do personagem principal. Claro que a montagem poderia resolver isso, não interrompendo repetidamente a mesma cena envolvendo Murphy no aeroporto, mas tudo que é capaz de fazer é fragmentar a narrativa consideravelmente.

Ao menos, o trabalho de Freddie Highmore, que já havia chamado a atenção em Bates Motel, mais do que dá conta do recado de recapturar nossa atenção repetidas vezes. Mesmo com seu personagem tendo dificuldade em se relacionar com os outros, Highmore o interpreta de tal forma que transmite confiança e, mais importante, nos faz enxergá-lo como uma pessoa verdadeiramente boa, o que diretamente dialoga com o título da série.

Highmore ainda se encaixa perfeitamente bem com o auxílio visual, que constantemente aparece na tela, trazendo números, imagens e mais, simulando a linha de raciocínio e o pensamento do protagonista – página tirada diretamente de Sherlock, com quem, não por acaso, Murphy se parece. O ator, de fato, parece estar pensando o tempo todo, seja sobre o problema de um paciente, ou sobre como se relacionar com aqueles ao seu redor – essa sua constante luta e, claro, seu bom coração, imediatamente capturam a afinidade do espectador, que não há como não gostar do personagem.

Esforço nenhum de ator, contudo, seria capaz de nos fazer esquecer, ou até mesmo não perceber, os diversos problemas que esses dois primeiros episódios de The Good Doctor carregam. Trata-se de uma série com potencial, certamente, mas que ainda está presa demais nos inúmeros clichês de produções do subgênero, além de contar com sérios problemas de montagem e roteiro. Dito isso, é totalmente possível que os próximos capítulos passem a melhorar essa nova série de David Shore, que pode encontrar sua própria identidade e desenvolver uma abordagem diferenciada das outras grandes séries sobre médicos que a televisão já nos entregou.

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