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OMG! #9 | Sim, crianças também são gays – e está na hora de falarmos disso na ficção

No último domingo (16), o jovem ator Noah Schnapp usou o Instagram para endereçar rumores de que seu personagem na série hit da Netflix, Stranger Things, seria homossexual. Schnapp, um garoto de 12 anos interpretando um personagem mais ou menos da mesma idade, usou palavras surpreendentemente eloquentes para fazer uma defesa de que a sexualidade do personagem continuasse “um mistério” e “nunca fosse revelada”. Segundo ele, a ficção que nos dá perguntas é melhor que a ficção que nos dá respostas.

É um argumento poderoso, que já foi feito por medalhões do cinema antes de Schnapp (incluindo o nosso próprio documentarista Eduardo Coutinho). Em alguma dimensão, portanto, ele está certo – mas quando Coutinho fala do filme que deixa perguntas e do filme que dá respostas, ele fala de algo mais profundo do que sabermos ou não a sexualidade de um personagem. É curioso como esse argumento seja usado (e Schnapp absolutamente não é o primeiro a usá-lo) quando se trata de personagens LGBT, e não quando se trata de personagens heterossexuais – dos quais, inclusive, Stranger Things está cheio.

Mostrar um garoto de 12 anos demostrando interesse pela menina ao seu lado na sala de aula é “natural” para qualquer história, mas se o alvo desse interesse pré-pubescente for outro garoto, de repente, é “forçar a barra”. A mensagem de Schnapp, embora articulada e absolutamente de seu direito, é falha especialmente porque não considera que a homossexualidade começa a se desenvolver da mesma forma que a heterossexualidade – na pré-adolescência.

Vejam bem, eu não estou dizendo que Will é gay. Em parte de sua defesa, Schnapp escreve: “Será que ser sensível, ou solitário, ou um adolescente que gosta de fotografia, ou uma menina com cabelo vermelho e óculos grandes, te torna gay?”. A resposta, obviamente, é não. No entanto, vale observar que nenhuma dessas coisas te exclui de ser gay tampouco – e se não exclui, porque nenhuma das crianças de Stranger Things pode ser?

O filme brasileiro Hoje eu Quero Voltar Sozinho
O filme brasileiro Hoje eu Quero Voltar Sozinho

Bola de cristal

Neste momento, se me permitem a divagação, estou tendo uma visão do futuro: a caixa de comentários deste post terá um (pelo menos um) usuário dizendo que estou ou “estamos”, se resolver dirigir sua raiva ao site, tentando subverter a infância e “empurrar nossa agenda gay pela ‘guela’ das crianças”, ou qualquer coisa assim. Sei que não dá exatamente para e defender de um argumento desse tipo, mas vamos lá: dizer que um personagem mirim é gay, ou pelo menos está questionando sua sexualidade ou gênero, não é empurrar agenda alguma – é refletir a realidade.

E a ideia de representar homossexualidade na infância e pré-adolescência não é a de colocar as crianças em filmes e televisão como seres hiper-sexuais de uma hora para outra, e sim de equalizar as representações. Não queremos um Kids (obra de 1992 de Larry Clark que famosamente mostrava personagens adolescentes hiper-sexualizados) gay, mas um pouco mais de Hoje Eu Quero Voltar Sozinho, que retratou um ambiente de ensino médio, por exemplo, em que pessoas homossexuais existem e passam tanto por desafios comuns de sua fase da vida quanto únicos de sua situação.

A experiência de qualquer pessoa LGBT com quem você conversar, apesar de sutilmente diferente de todas as outras, terá elementos comuns, e um deles é uma sensação de despertar entre a pré-adolescência e a adolescência, uma transição complicada e particular em que começamos a desvendar quem somos e o quão fundamentalmente desajustada dos padrões sociais essa nossa identidade é. Pode ser que a pessoa com quem você converse tenha demorado mais para dizer em voz alta, ou mesmo para si mesma, mas existe um entendimento intrínseco, mesmo na inocência da criança, sobre quem viremos a ser um dia.

A comunidade LGBT sente uma proximidade com os personagens sensíveis, solitários, aculturados ou “de cabelo vermelho e óculos grandes” de Stranger Things, sim, e essa proximidade é maior do que a daqueles que viveram sua adolescência como um jovem heterossexual, sim. Sexualidade, ou pelo menos a sugestão e desenvolvimento dela, é o centro da experiência escolar e da adolescência de qualquer pessoa, gay ou não. Então porque só vemos garotos paquerando garotas nos programas estrelados por essa faixa etária?

tomboy
Tomboy

Os precedentes

Quando lanço esse meu discurso, venho apoiado por outras instâncias em que isso foi retratado – não é só em Hoje Eu Quero Voltar Sozinho que personagens pré-adolescentes e adolescentes desenvolveram sexualidade ou identidade de gênero fora do padrão heteronormativo. Em filmes como North Sea Texas (2011) e Dream Boy (2008), garotos de 14 e 15 anos, mais ou menos, se apaixonam e passam por descobertas sexuais, românticas e sentimentais. Curioso notar que o primeiro é holandês e o segundo, dos circuitos independentes do cinema americano.

Por algum motivo, homossexualidade na adolescência ainda é tabu. E olha que já vimos em Glee, em Shameless, em Skins, em muitas outras séries e filmes estrangeiros. Se a ideia é achar representações de pessoas LGBT na infância ou pré-adolescência, então, o trabalho é ainda mais complicado – talvez o exemplo mais conhecido seja Tomboy, um filme francês de 2009 sobre um garoto transgênero de 10 anos. Ainda em 1997, o também francês Minha Vida em Cor-de-Rosa apresentava uma menina transgênero mais ou menos da mesma idade.

Discutir a comunidade LGBT em relação à infância e pré-adolescência é tabu porque em muitos momentos essa discussão é vista como uma sexualização muito mais do que é uma de representação. A ideia não é subverter ou avançar o desenvolvimento sexual da criança através de representações distorcidas – pelo contrário, é refletir uma realidade para que elas não se sintam tão sozinhas. Em sua vontade de não ter a sexualidade de Will revelada, ainda que não intencionalmente, Noah Schnapp privou milhões de pré-adolescentes gays por aí de se verem representados em algum lugar.

Narrativa ficcional constrói a realidade de uma forma muito concreta, como reflexão e como agente discursivo de mudança. A essa altura do campeonato, parece que repetir esse discurso aqui nas minhas colunas chega a ser cansativo, mas é porque cada crença colocada nelas se baseia nesse princípio – dizer que o cinema blaxploitation ou a música soul não tiveram a ver com o avanço da destruição de preconceitos raciais pelo mundo (mesmo que ainda haja muito o que se avançar) não é diferente de dizer que filmes como O Nascimento de Uma Nação, de D.W. Griffith, não deram respaldo e apoio para uma sociedade preconceituosa e saudosa dos tempos de escravidão.

Barb em Stranger Things
Barb em Stranger Things

Coisas nem tão estranhas assim

Por fim, vale também o argumento de que Stranger Things se localiza em um momento da cultura pop e da sociedade em que a comunidade LGBT se tornou mais vocal nas redes sociais, e para uma série que é hospedada em um serviço de streaming on-line, repercussão digital é a vida ou a morte. The 100 aprendeu isso da pior maneira possível, e Stranger Things talvez não queira virar o barco em seu desfavor após um começo de relação tão promissor com a comunidade virtual.

Em um ambiente em que séries são cobradas por sua inclusão e representatividade, descartar homossexualidade como um comportamento possível ou “um ponto necessário” para a história é tanto uma espécie de suicídio comercial como uma declaração de limitação artística. Stranger Things, como Schnapp sabiamente apontou, é a história de um grupo de crianças desajustadas com as quais qualquer pessoa pode se identificar – até o momento em que a série exclui a possibilidade de qualquer uma delas ser igual a uma parcela de seus espectadores.

Para uma história de inclusão, união entre rejeitados, que faz homenagem a uma época em que, em muitos sentidos que não o explícito, a extravagância do espectro de sexualidade fora do convencional estava mais estampado do que nunca, seria bizarro se Stranger Things se recusasse a retratar também a experiência LGBT. E sinal disso, inclusive, já foi dado pelos irmãos Duffer, autores da série que Schnapp cita em seu post no Instagram como sábios por não revelar a sexualidade dos personagens.

Na segunda temporada de Stranger Things, veremos Max, uma nova personagem feminina que “não se encaixa no padrão do que se esperava das garotas na época, se dando melhor com os meninos e fazendo coisas consideradas masculinas”. Esse é um personagem queer, quer você soletre isso em letras garrafais em sua primeira aparição ou não. E embora queer não seja sinônimo com gay, ou trans inclusive, é importante perceber que, ao contrário do que indica Schnapp, os irmãos Duffer estão continuando a abraçar a diversidade em seu conto oitentista da Netflix, e a reconhecer que elementos de sexualidade e gênero são construídos antes da pós-adolescência onde Hollywood insiste em colocar suas histórias LGBT.

Ou seja, a questão é que não precisamos arrancar Stranger Things, ou Will, do armário – eles nunca estiveram lá dentro.

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