Eu preciso confessar uma coisa, caro leitor: a profissão do crítico de cinema e de TV, uma à qual eu tenho me dedicado há alguns anos, é completamente inútil. E sim, eu sei que é irônico começar um texto de análise de entretenimento com essa sentença, mas quando digo que a crítica de TV é inútil, quero dizer no aspecto grandioso da coisa. Como análise de momento, exercício de dissertação e até orientação cultural, a crítica de TV é talvez imprescindível para a narrativa pop do nosso tempo (e de qualquer outro). A inutilidade aparece quando olhamos para trás e percebemos que a recepção crítica pouco ou nada teve a ver com o poder cultural das obras que analisou.
Impulsionados pelo calor do momento, críticos falharam em ver a grandiosidade de obras como The Rocky Horror Picture Show e Blade Runner, por exemplo, e a culpa não é nem mesmo deles. Perspectiva é algo complicado e, se você não está verdadeiramente mergulhado no zeitgeist do seu momento cultural, é difícil ver de onde vem determinadas obras que no futuro serão marcas de sua época. Nesse sentido grandioso, de visão integral, a profissão do crítico é completamente inútil simplesmente porque o tempo a faz melhor do que qualquer jornalista.
O caso específico que me levou a essa reflexão é a “disputa” entre The Walking Dead e Game of Thrones pelo posto de série definidora do nosso momento cultural. É difícil encontrar uma medida equilibrada nessa disputa, por que a discussão entre essas duas séries leva a debates acalorados demais que só consideram uma parte ou ponto de vista da situação. Por exemplo, The Walking Dead rotineiramente bate a audiência de Game of Thrones por milhões de espectadores de diferença – mesmo com a queda de números na sétima temporada, a marca do episódio mais recente (10.48 milhões de espectadores) bate a audiência do finale da sexta temporada de Thrones (8.89 milhões).
Essa medida não leva em conta, no entanto, que a HBO é distribuída em menos casas nos EUA do que a AMC, que faz parte do que os americanos chamam de “pacote básico” da TV a cabo. Também falha em medir o impacto internacional de cada uma das séries, a dominância do buzz nas redes sociais, o prestígio crítico e de premiações, e mais um milhão de fatores que determinam o sucesso ou fracasso de uma série na era da Peak TV e da cultura globalizada. É seguro dizer que esses números indicam que The Walking Dead e Game of Thrones são duas das séries mais vistas do momento, mas eles não nos apontam para aquela que tem o maior impacto cultural.
O outro lado da moeda
Ao mesmo tempo, não parece ser interessante dizer que Thrones é melhor pelos prêmios que coleciona ou os elogios da crítica. Como eu já deixei perfeitamente claro nos parágrafos anteriores, nós, pobres críticos de TV, só conseguimos expressar a nossa visão naturalmente limitada sobre um produto ou narrativa. A falácia de que a crítica é a opinião especializada e puramente técnica de “entendidos do assunto” é só isso: falácia. Crítica de entretenimento é um exercício em expressão de ponto de vista, e sua função é tentar organizar os aspectos técnicos e subjetivos do produto de uma forma que ajude o leitor a refletir também sobre o que acabou de ver.
Em suma, crítica não é uma medida absoluta da qualidade de algo, nunca foi, e nunca será. Há opiniões interessantes por aí que argumentam que a narrativa de The Walking Dead é superior a de Game of Thrones por sua capacidade de se renovar, buscar dimensões diferentes da história, cenário e personagens, de uma forma cíclica que é mais apropriada ao formato televisivo – é mais ou menos o ponto que um artigo recente da redação do Observatório fez, como os fãs devem estar bem lembrados.
“Acho que [The Walking Dead] será uma dessas séries com muitos episódios, mesmo que se torne um pouco chata e impopular, porque o universo dá essa oportunidade e não enxergo uma conclusão em uma série que, pra mim, pode mostrar como seria a vida em situações completamente diferentes aos quais os personagens aprenderam a viver”, comentou o Ilson Junior, um fã da série de São Paulo. “Atualmente tenho visto apenas pra acompanhar e ver até onde vai essa história da sétima temporada, pois não me prendeu nem me interessou muito. Mas tenho esperanças de algo melhor na oitava!”
Por outro lado, há quem argumente que Thrones tem mesmo um formato mais inovador, que sua narrativa constantemente em expansão tem um foco e um apelo que falta no estilo mais conservador de The Walking Dead. A violência e popularidade das duas séries são o que as conectam, mas suas abordagens são fundamentalmente diferentes mesmo se você não considerar o fato de que seus temas são diametralmente opostos. The Walking Dead é sobre comunidade e a sobrevivência da decência humana em tempos difíceis, enquanto Game of Thrones vem se estruturando como uma narrativa sobre a forma como o tempo nos molda, as pequenas revoluções de crença que ele opera em nós mesmos.
“Não me recordo de ter visto alguma série que conversa com as questões familiares, como o que é família e o que você seria capaz de fazer pela sua da forma como The Walking Dead lida, e a capacidade de levar essa reflexão a níveis bem extremos, dos quais a gente nunca para para pensar no cotidiano”, me disse o Ilson. “Acho que a série trabalha muito bem a questão do que uma sociedade em um mundo pós-apocalíptico experimentaria vivenciar em relação aos laços familiares e amorosos, como toda a mudança de valores-bases que sustentam nosso mundo contemporâneo para valores que atualmente são muito mal vistos”.
Como duas séries com objetivos e operações tão diferentes podem ser colocadas lado a lado? A resposta fundamental é que não podem, simplesmente, e que só o tempo nos dirá qual das duas será a narrativa fundamental da nossa era. Por enquanto, o que podemos fazer é lançar apostas, e preciso dizer que meu dinheiro está em Game of Thrones. Impacto cultural é impossível de medir, mas é perfeitamente possível de se sentir – como alguém que mantém os olhos e ouvidos abertos e bem próximos do coração da cultura atual, acho que Westeros se entrelaça mais no nosso zeitgeist do que Rick Grimes e companhia.
Correndo o risco
Isso não quer dizer que eu ache a série da HBO perfeita – como produto de um sistema, um grupo de criadores e um momento cultural humano, ela é falha e cheia de furos que são e continuarão sendo justamente apontados por gente como eu, porque esse é o nosso trabalho. O fato de que a equipe de diretores e roteiristas em Thrones raramente inclui alguma mulher, ou a bem da verdade qualquer tipo de diversidade, é condenável. A forma como a série recorre demais à sexualidade e ao estupro para chamar a atenção e chocar o público também – mas o fato de que vemos isso em Thrones, e apontamos para Thrones como um paradigma desses e de outros problemas na indústria, só reforça o caso de que ela é a narrativa mais importante do nosso tempo.
Friends e Seinfeld são as duas sitcoms fundamentais de uma época em que o formato passou por seu melhor momento histórico, mas o são também porque encarnam todas as falhas e problemas dessa mesma época. Friends tem atitudes ambíguas em relação à homofobia e à diversidade racial, além de trazer clichês de comportamento masculino e feminino cansados (no mínimo) e ofensivos (no máximo). Seinfeld, por outro lado, é uma gema de cinismo que criou uma bola de neve de narrativas “sobre nada” que se concentra em personagens irredimíveis e, francamente, insuportáveis. Assim como elas, Game of Thrones encarna todos os problemas e questões que estamos debatendo hoje em dia como sociedade, e por isso vai marcar época.
Além disso, para mim a exploração que Game of Thrones faz dos temas que citei um pouco mais acima (crença, tempo e opressão) é mais profunda e mais importante do que a feita por The Walking Dead do nosso senso de dignidade e pertencimento humanos. Ambas conversam com uma reflexão muito importante do nosso tempo – em uma era de individualismo, quem somos como sociedade? Como agimos uns com os outros? O que significa poder, e o que fazemos com ele? Como o acesso ao mundo violento e sombrio ao nosso redor muda o nosso processo de amadurecimento? Seja em Carl Grimes ou Arya Stark, é possível ver uma próxima geração tragicamente sábia nascendo, ao mesmo tempo que é óbvio que eles vão cometer o mesmo tipo de erros que seus antecessores cometeram na adolescência – mas as consequências serão muito, muito piores.
O gancho aqui é que Game of Thrones faz essas perguntas de forma mais pungente. Sua capacidade de derrubar nossas muralhas de cinismo e distanciamento é maior, e a reflexão que ela provoca, como resultado, é muito mais ampla e significativa. Com The Walking Dead, a impressão é que sempre estamos discutindo a morte mais recente, a moralidade da violência mostrada na série, ou quantos palavrões Negan vai falar no próximo episódio. Até a discussão em torno dos episódios no estilo “bottle” (focados em só um personagem ou cenário) parece ter caído para o lado do ritmo da série, esteja ele “arrastado” ou não. The Walking Dead não nos deixa respirar, em um regime opressivo de episódios estendidos e publicidade – enquanto isso, por todas as suas (de novo, condenáveis) estratégias de choque, Game of Thrones deixa que absorvemos a complexidade moral e política de sua narrativa da maneira que só grandes contadores de histórias sabe fazer.
O tempo dirá se estou errado, e estarei preparado para isso se ele disser, conhecendo os ossos do meu ofício como conheço, mas por enquanto, é isso que tenho a dizer: estamos vivendo a era de Game of Thrones, e não a de The Walking Dead.