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Canto Cult #6 | Bem mais que James Wan: a melhor fase do cinema independente de horror

A Canto Cult desse mês de outubro chega para você, leitor, exatamente no Dia das Bruxas. Como não poderia deixar de ser, reservamos esse espaço especialmente para falar sobre o cinema de terror – mas não qualquer cinema de terror, já que somos a coluna dos cinéfilos “diferentões” de carteirinha. A conversa aqui é cinema independente de terror, e a fase espetacular que ele está vivendo.

Dá para entender por que, aliás, o cinema de horror está vivendo esse momento exatamente agora. Historicamente, o gênero de horror sempre funcionou a partir do marketing boca-a-boca. Poucos filmes do gênero se tornaram sucessos graças a grandes campanhas publicitárias de estúdios (talvez o Poltergeist original e alguns outros exemplos dos anos 80 sejam as exceções que provam a regra) – a história de filmes que marcaram a história do terror, como A Noite dos Mortos-Vivos (1968) e A Bruxa de Blair (1999) é uma de baixo custo e alto retorno.

Talvez justamente por isso a história do horror em Hollywood seja uma das mais fascinantes entre os grandes gêneros do cinema americano. O público do filme de terror, ao contrário do consumidor médio do cinema de ação ou da comédia romântica, procura sempre a novidade – ao lado da ficção científica, o terror é talvez o gênero que mais contribuiu para a renovação dos ares no cinema dos EUA através das décadas.

A mesmíssima coisa acontece hoje em dia. A diferença é que o marketing boca-a-boca virou marketing via redes sociais, e o fardo que o terror independente carrega para mostrar um lado criativo e vital do cinema americano é um pouco maior. Por mais que o discurso do arrasa-quarteirão de super-herói se conecte com a nossa cultura pop e diga muito sobre o momento que estamos vivendo como sociedade, o cinema de terror independente é onde borbulham novas ideias, e analisando esses filmes é impressionante notar o quanto eles também tem a dizer.

Por essas e outras que, nesse Halloween, a pedida é muito mais um filminho de terror feito por uns trocos e lançado no circuito independente do que um Invocação do Mal, por exemplo – por mais que o arroz com feijão bem feito de James Wan impressione e valha o tempo gasto, ele empalidece em fascinação e narrativa perto de alguns dos experimentos cinematográficos dos quais vamos falar abaixo.

Mike Flanagan no set de Hush - A Morte Ouve
Mike Flanagan no set de Hush – A Morte Ouve

Naturais

Mike Flanagan, 38 anos, é talvez meu preferido nessa onda toda de diretores de horror, provavelmente porque ele é de fato um autor artesanal que se dedica completamente ao gênero. De sua estreia em Absentia (2011) até o espetacular O Espelho (2013), Flanagan parece gostar de brincar com a percepção do espectador. Não é à toa que ele assina a edição de seus próprios filmes – tanto em O Espelho quanto no incrível Hush: A Morte Ouve (2016), ainda um dos grandes filmes que vi esse ano, a montagem é essencial para manipular a sensação do espectador.

O próximo projeto de Flanagan é uma adaptação de Stephen King, Jogo Perigoso, uma história que muitos consideravam “infilmável” por se passar quase inteiramente em só um quarto. Se alguém pode fazer funcionar, no entanto, é Flanagan. A esperta confecção que ele aplica a seus filmes é comparável talvez só ao trabalho prolífico de Adam Wingard, que recentemente fez o cruzamento para um grande filme de estúdio com o reboot de Bruxa de Blair. Em Você é o Próximo (2011) e especialmente The Guest (2014), ele mistura gêneros e referências oitentistas com um discurso nas entrelinhas que é ácido e afiado sem parecer pedante.

The Babadook
The Babadook

Enquanto isso, outra estrela natural do gênero surgiu recentemente. Após anos trabalhando como atriz, Jennifer Kent estreou na direção com The Babadook, um assombroso filme que esconde por trás de suas correntes no gênero de horror uma história belíssima sobre luto e a nossa complicada relação com ele. De forma contrária a Flanagan e Wingard, cujos pés estão firmes nas referências e procedimentos do gênero, Kent contou a história de um monstro que simboliza um horror muito real. The Babadook é tocante e devastador (especialmente na sublime interpretação de Essie Davis), mas também, em sua mistura de referências visuais de filmes clássicos do expressionismo alemão, assustador.

Outra estreia incrível foi Robert Eggers – A Bruxa, filme dirigido pelo cineasta, é talvez diametralmente oposto a The Babadook em estilo, mas curiosamente o procedimento das narrativas é bem parecido. Cheio de acontecimentos sobrenaturais, o filme de Eggers ainda assim é sobre a imposição de culpa nas religiões cristãs, e a forma como a sociedade patriarcal imputa grande parte dessa culpa às mulheres. Rústico só em premissa, o filme é excepcionalmente barroco em sua realização e seus detalhes – do uso da sombra na fotografia às atuações centradas e comoventes, passando pela incômoda e perfeita trilha-sonora.

Karyn Kusama no set de The Invitation
Karyn Kusama no set de The Invitation

Refugiados

Nem todo diretor da nova onda de horror independente nasceu dentro do gênero, no entanto. Pelo contrário, alguns diretores cujas aventuras anteriores não foram exatamente bem-recebidas também estão se refugiando no terror. Assistir The Invitation e perceber que ele é um filme de Karyn Kusama é surpreendente, porque a talentosa diretora vem do drama social (sua estreia, Boa de Briga, de 2000) e de uma fracassada tentativa no cinemão comercial (Aeon Flux, de 2005). Hollywood parecia ter dado as costas para essa inegavelmente talentosa cineasta após o primeiro erro, então ela se refugiou no terror indie.

The Invitation é a enganosamente simples história de um homem indo a uma festa na casa de sua ex-mulher, ao lado da nova namorada, para inevitavelmente reviver um trauma de seu passado. A forma como Kusama arranca os significados mais sutis do roteiro de Phil Hay e Matt Manfredi e os expressa visualmente é o que faz do filme uma viagem especial com uma mensagem importante sobre a forma como guardamos, lidamos ou não lidamos com a nossa dor.

Corrente do Mal
Corrente do Mal

O melhor ficou para o final: David Robert Mitchell e sua obra-prima, Corrente do Mal. Obsessivamente concebida nos mínimos detalhes, do design de produção que não deixa o espectador se localizar temporalmente à fotografia em profundidade que nos manipula a analisar cada frame de cada enquadramento à procura de uma assombração que, na maioria das vezes, não está lá, tudo em Corrente do Mal parece apontar para um conhecimento do gênero que não ultrapassa, no entanto, o absoluto know-how cinematográfico de seu diretor e equipe.

Maika Monroe entrega uma atuação que a transformou em estrela, e Corrente do Mal é talvez o exemplo perfeito para mostrar como o centro nervoso da criatividade hollywoodiana, hoje em dia, está no cinema de terror independente. Um “monstro” absolutamente original para o gênero, um resgate oitentista que serve muito mais para retratar o sentimento da pós-adolescência do que homenagear clássicos da época ou qualquer coisa do tipo, um elenco jovem com futuros promissores… Tudo aqui cheira a uma nova Hollywood que nunca exatamente chega ao cinemão comercial, mas cada vez mais ameaça exigir que os grandes estúdios melhorem o nível do seu jogo.

Algumas menções honrosas:

  • Ben Wheatley (Kill List, High-Rise)
  • Severin Fiala, Veronika Franz (Boa Noite, Mamãe)
  • Justin Benson, Aaron Moorhead (Resolution, Primavera)
  • Ti West (A Casa do Diabo, Hotel da Morte)
  • Jeremy Saulnier (Blue Ruin, Sala Verde)
  • Michael Dougherty (Contos do Dia das Bruxas, Krampus)

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