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Olhar Geek #19 | O problema dos críticos com os filmes da DC é mais profundo do que parece

Eu tinha 10 anos quando li minha primeira crítica de cinema. Foi na Revista SET, que já não existe mais, de um autor que eu já não me lembro mais o nome: era de Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban, e eu discordava da opinião do crítico em questão, que saudava o filme como o melhor da franquia até então. Eu tenho alguns sérios problemas com Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban, especificamente o fato de que, como em muitos de seus filmes, Alfonso Cuarón deixa o estilo passar por cima da substância da narrativa.

Claro, eu não entendia exatamente porque discordava da crítica da SET naquela época. Afinal, eu tinha 10 anos. Na minha cabeça, Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban simplesmente não era tão fiel quanto os dois anteriores, e isso já era um problema – o crítico era meu inimigo. Conforme o tempo passou, isso começou a mudar dentro da minha cabeça. Minha paixão por cinema me fez ler mais crítica, e depois crítica de TV, e aos poucos ficou claro o campo minado complexo que é esse da análise de entretenimento e arte.

Corta para 2016, e a discussão do ano, de repente, é uma que fala muito alto para mim: a reação crítica a filmes que se localizam firmemente dentro da narrativa pop do século XXI. Entender cultura pop como não só música eletrônica, mas qualquer arte de tendência popular, que consegue falar com um público amplo e, por isso, se emaranha com a nossa própria noção da época em que vivemos, se tornou uma peça fundamental para meu trabalho e, porque não, minha personalidade. Em todos seus ramos e sentidos, cultura pop é importante – e nenhuma é mais importante, hoje em dia, do que o cinema de super-heróis.

Quando Batman vs Superman chegou, em março, a internet parecia ter explodido em textões de níveis de articulação e opiniões radicalmente diferentes: os que amaram e detonaram os críticos especializados que largamente caíram em cima do filme de Zack Snyder, e os que odiaram e declararam o diretor como a própria maldição da existência do universo cinematográfico da DC. Como observador da cultura pop, é fácil dizer que essa radicalização é prejudicial – mas ela também é muito fascinante.

Batman vs Superman
Batman vs Superman

Poptimist

Longos sete meses, muitas sessões repetidas de Batman vs Superman, e mais um filme da DC depois, o problema do universo cinematográfico da DC com os críticos de cinema parece um pouco mais profundo do que inicialmente nos dávamos conta – como quase tudo na cultura pop, inclusive, as repercussões são mais claras quando podemos olhar para elas de alguma distância. A verdade é que a crítica de cinema sofre com uma crise que a crítica de música sofreu muito tempo atrás, e que gerou a filosofia que hoje chamamos de poptimism.

A palavra, uma mistura de pop com a palavra inglesa para “otimismo”, diz tudo: na crítica musical de hoje, a canção pop de três minutos, refrão e gancho grudento merece tanta análise quanto o jazz clássico. Por vezes, confunde-se o poptimism com uma complacência passiva ao domínio da estrutura pop na linguagem musical atualmente, mesmo em outros gêneros como o country e o rock. É importante notar que por “estrutura pop” usamos a mesma definição que demos alguns parágrafos acima: não é só música eletrônica, e sim música que conversa culturalmente com o tempo presente.

Poptimism, no entanto, não é complacência na música, e não deve ser no cinema. Pelo contrário, é a compreensão de que existe significado profundo dentro das formas de arte mais comerciais, e que ele existe especialmente porque elas são mais comerciais, e falam com tanta gente. Isso não absolve de denunciar mensagens prejudiciais ou mesmo filmes vazios na cultura pop, mas é importante ler as entrelinhas, e levar a sério a forma de arte que vai nos definir quando formos olhados de longe, no futuro.

No momento, e isso ficou muito claro com a recepção de Batman vs Superman e Esquadrão Suicida entre os jornalistas especializados, a crítica de cinema se encontra em um precipício onde precisa deixar o espírito esnobe de lado e mirar nos alvos certos para denunciar a futilidade e falta de criatividade dos blockbusters hollywoodianos. O universo DC não é o alvo certo.

Um arrasa-quarteirão que quer ser um filme de horror conceitual dentro de um espetáculo de vídeo game, como Batman vs Superman, não é o alvo certo; e uma produção atribulada que ainda encontra uma forma de acertar seus personagens em uma jornada moral complexa, como Esquadrão Suicida, também não. Se não fossem estrelados por heróis de capa, nenhum desses filmes que descrevi logo acima seria tão massacrado pela crítica quanto foi.

Capitão América: Guerra Civil
Capitão América: Guerra Civil

Cara e coroa

Talvez a questão mais fascinante dessa situação toda, no entanto, seja uma que muitos fãs são rápidos em apontar: a forma como os filmes da Marvel, concorrente da DC, recebem geralmente críticas positivas diametralmente opostas àquelas que lemos para Batman vs Superman e Esquadrão Suicida.  Nenhum dos filmes da Marvel nos últimos dois anos recebeu média menor do que 60/100 no Metacritic – e é fascinante tentar entender porque esses filmes seduzem os críticos de maneira mais eficiente a embarcar na noção de que cultura pop é também boa arte.

Primeiro, vou ser absolutamente claro, não subscrevo à noção ridícula de que os críticos são de alguma forma “comprados” pela Marvel/Disney para dar boas críticas aos filmes lançados por eles. Nenhum argumentador sério dessa questão consideraria essa possibilidade, mas estamos em tempos de extremismos, e tentar remover o mérito da “concorrente” por suas boas críticas está bem em alta no momento. Este que vos fala, pelo contrário, acha que é absolutamente um mérito da Marvel a forma como o estúdio conseguiu encontrar uma fórmula que permite sutis subversões e mantem os críticos cantando no mesmo tom filme após filme.

Parte do motivo pelo qual os filmes da Marvel ganham esse “passe livre” é porque eles se acomodam a uma noção pré-concebida da forma como um blockbuster deveria ser, e parecem extraordinariamente confortáveis para trazer suas inovações, brincadeiras conceituais e discursos políticos e sociais dentro dessa noção. Capitão América: O Soldado Invernal é um thriller político inspirado por clássicos como Sob o Domínio do Mal (1962), mas é também um filme que parece muito à vontade dentro dos limites do gênero de super-herói.

Batman vs Superman não está à vontade no gênero de super-herói. Cada tomada de caminho narrativo do filme deixa transparecer a luta que ele trava consigo mesmo, entre a ambição artística de um diretor visualmente genial, um roteirista vencedor do Oscar com algo profundo para dizer sobre o mito do super-herói, e as pressões mercadológicas de uma franquia em expansão. Como resultado, Batman vs Superman pode ser um pouco desajeitado, às vezes, assim como Esquadrão Suicida com seus cortes e interferência de estúdio – mas devemos a esses filmes, ainda, uma enorme dose de respeito.

Zack Snyder
Zack Snyder

Mais é mais

Calma, eu explico porque devemos respeito ao filme de Zack Snyder. Em uma época de blockbusters pouco ou nada inspirados como Tartarugas Ninja, Transformers e virtualmente qualquer coisa na qual Michael Bay ou Jerry Bruckheimer coloquem as mãos, Batman vs Superman chegou com uma visão única do mito do super-herói, que é apenas, e eu sinto que preciso repetir isso, o mais importante da cultura pop da nossa era. E sim, “única” é a palavra-chave, porque por mais que você não tenha gostado da proposta sombria de Snyder e seus roteiristas, é impossível não lhe dar a virtude da absoluta novidade de seu tratamento.

Christopher Nolan ensaiou algo parecido em sua soberba trilogia do Cavaleiro das Trevas, à qual ainda pertence o melhor filme de super-heróis já feito, mas olhar para o filme de Snyder é perceber uma versão mais esteticamente pensada e extrapolada, mais deliberadamente quadrinesca, dessa proposta. É inteiramente possível que eu seja o único jornalista pontificando contra isso, mas a alardeada direção “otimista” pela qual Geoff Johns quer levar o universo DC lhe faz um enorme desserviço.

Em um cenário em que o mais do mesmo existe em abundância, é preciso celebrar o diferente mesmo que ele seja falho. Batman vs Superman pode ser Ícaro, que voa com asas de cera perto demais do Sol e acaba estatelado no chão, mas por um breve e glorioso momento da cultura pop, ele esteve lá em cima. Daqui a 20, 30 anos, é disso que vamos lembrar – e os críticos devem olhar para Batman vs Superman com mais gentileza do que olham hoje.

Os filmes da Marvel tem feito uma marca indelével na cultura pop atual através de uma narrativa complexa e densa não só na forma como se entrelaça, mas na abordagem de temas como identidade, militarismo, desconfiança institucional, corrupção e prestação de contas. Em sua forma mais pura, o universo Marvel é bem-sucedido porque segue existindo dentro de seus próprios termos – e crítica deveria ser sobre entender quais são esses termos, para quem eles podem apelar, e o que eles estão nos dizendo.

Em 2016, a maioria da crítica atuou no sentido contrário, obrigando o universo DC a se encaixar em um conceito que não era e nunca foi o seu – em épocas de poptimism e celebração da diversidade, não há pecado maior.

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