Críticas

Crítica | Voando Alto

Em pleno século XXI as pessoas tidas como estranhas ou diferentes ainda sofrem preconceito de nossa sociedade, sendo rotuladas como idiotas, fracassadas ou incapazes. Na época atual, na qual está havendo um triste renascimento de ideologias fascistas e/ou de extrema-direita no mundo – notoriamente no Brasil – esse preconceito, infelizmente, ainda está muito alto. Entretanto, sempre há pessoas que ousam – às vezes sem se darem conta disso – desafiar esse preconceito e aqueles que o alimentam. É o que podemos ver no filme Voando Alto.

Michael Edwards, mais conhecido como Eddie Edwards (interpretado pelo galês Taron Egerton, de Kingsman – Serviço Secreto), desde criança (interpretado pelos irmãos iniciantes Tom e Jack Costello) tem o sonho de tornar-se um atleta olímpico, mesmo sendo um garoto míope, desengonçado e com problemas em seu joelho. Eddie é sempre incentivado por sua mãe, Janette (a simpática Jo Hartley, de Vingança Redentora), mas, por outro lado, é sempre desencorajado pelo seu pai, Terry (Keith Allen, de Trainspotting – Sem Limites), que prefere que o filho seja um operário da construção civil.

Tendo tentado todos os tipos de esporte, Eddie opta pelo Downhill (em português é chamado de descida livre), uma modalidade de esqui na neve. Porém, após uma apresentação desastrosa diante de patrocinadores, Eddie é cortado da equipe olímpica de esqui da Grã-Bretanha. Desolado, Eddie até pensa em desistir de ser atleta, mas ao ver uma foto de salto de esqui, muda de ideia e de modalidade e decide ir até a Alemanha para começar a treinar. Lá, encontra o ex-atleta da equipe olímpica de esqui dos EUA, Bronson Peary (o australiano Hugh Jackman, de Os Miseráveis), que, agora, ganha a vida limpando pistas de esqui e é alcoólatra.

Eddie pede a Peary que o treine para que possa competir nos Jogos Olímpicos de Inverno, mas o estadunidense recusa por não acreditar no potencial de Eddie. Porém, ao ver a determinação inabalável do jovem, mesmo este tendo recebido todo tipo de desencorajamentos e sofrido várias quedas e fraturas, Peary resolve ajudar o desastrado esquiador inglês. Apesar da oposição e dos obstáculos impostos pelo Comitê Olímpico Britânico, Eddie consegue se classificar para as Olimpíadas de Inverno onde fará história – mas de um jeito diferente dos grandes campeões olímpicos.

Os Jogos Olímpicos de Inverno de 1988, realizados na cidade de Calgary, Canadá, sempre serão lembrados por três coisas que ocorreram durante a sua realização: foi a última vez que a União Soviética (URSS), enquanto nação, competiu; a participação pioneira da equipe de bobsled – uma espécie de trenó – da Jamaica (que foi retratada no filme Jamaica Abaixo de Zero, em 1993, e sobre a qual há uma breve menção em Voando Alto) e da também participação de Eddie Edwards, que ganhou o apelido de “The Eagle” (“A Águia”) nessa competição.

Em todos os anos – ou próximo deles – nos quais são realizados os Jogos Olímpicos, sejam de inverno ou de verão, os cinemas são inundados com filmes sobre atletas e suas façanhas. Em 2012, ano dos últimos Jogos Olímpicos de verão, realizados em Londres, foi lançado o filme britânico Fast Girls, um filme sobre atletismo que tinha à frente de seu elenco as inglesas Lenora Crichlow (série Being Human) e Lily James (Orgulho e Preconceito e Zumbis). Em 1981, outro filme da Grã-Bretanha, Carruagens de Fogo, que contava a história da equipe britânica de atletismo dos Jogos Olímpicos de 1924, conquistou quatro Oscars – inclusive o de Melhor Filme – e a música-tema composta pelo grego Vangelis ficou tão famosa que acabou por se tornar um hino extra-oficial de todas as competições olímpicas desde então.

Estes são apenas alguns exemplos, há vários outros. Mas, de um modo geral, eles transmitem as (manjadas) mensagens do tipo “nunca desista”, “vá atrás de seu sonho”, “dedique-se e vencerá”. Na maioria desse tipo de filme, aquele que transmite e personifica essa mensagem, o atleta, é ao mesmo tempo um herói e tem um aspecto igualmente heroico. Em nossa atual sociedade neoliberal (de forte parentesco com o fascismo), essa figura do atleta-herói é extremamente valorizada por ser sinônimo de vencedor e é uma apologia à chamada meritocracia (conquistar algo pelo mérito), ideologia muito apreciada pelos coxinhas sejam estes atletas ou não.

Eddie Edwards é mais parecido com um nerd, é um quatro-olhos troncudo, com uma aparência nem um pouco heroica, é o tipo de pessoa pela qual ninguém daria nada e que os coxinhas desprezam. Em outras palavras, Eddie é um anti-herói e é aí que está a grande sacada do filme.

Dá para acreditar que alguém como Eddie, um esquisitão desengonçado e atrapalhado, possa fazer algo de relevante? O próprio público do cinema tampouco acredita nisso ao tomar contato com ele, mas, no decorrer do filme, este mesmo público percebe que, sim, este sujeito diferente e estranho, por quem ninguém tem a menor consideração, pode, por si só, fazer a diferença, mesmo que de um modo heterodoxo, completamente oposto ao modo ortodoxo do atleta-herói dos coxinhas.

O britânico Dexter Fletcher iniciou sua longa carreira de ator ainda na infância (sua estreia foi em Bugsy Malone – Quando As Metralhadoras Cospem, do diretor Alan Parker, em 1976). Sua estreia na direção deu-se em 2011 com o drama Wild Bill, que foi bem recebido pela crítica inglesa. Voando Alto é o seu terceiro filme e Fletcher mostra que tem uma mão firme e uma direção muito segura. Fletcher consegue com maestria associar o filme com o treinamento de Eddie: a princípio, parece que não vai dar em nada, mas à medida que o filme avança, o progresso deste é o progresso de Eddie, que melhora a cada momento até chegar ao seu ápice.

O jovem ator do País de Gales, Taron Egerton, é um astro em ascensão na Grã-Bretanha. Sua carreira é curta, mas de sucesso: começou em 2013, na televisão (nas séries Lewis e The Smoke), e explodiu em 2015 com o filme Kingsman: Serviço Secreto, o sucesso-surpresa daquele ano. Sua atuação lhe valeu o prêmio da prestigiosa revista de cinema Empire de Melhor Ator Novo. Em Voando Alto, ele mostra que é, de fato, um ator muito competente. De objeto de desejo das adolescentes em Kingsman, ele passa a objeto de repulsa das mesmas, pois Eddie Edwards não é exatamente alguém atraente. Mas o trabalho de Egerton vai além da aparência obtida com figurino, penteado e maquiagem: ele pegou com perfeição todos os trejeitos e maneirismos do verdadeiro Eddie Edwards e, apesar de toda a esquisitice do personagem, faz com que a plateia torça loucamente por ele.

Hugh Jackman já é há muito tempo um ator consagrado, com atuações sempre boas e convincentes. Em Voando Alto, Hugh tem mais uma boa performance como o alcoólatra, cínico e amargurado Bronson Peary, inclusive com boas cenas de humor. Porém, apesar de seu bom trabalho, dá para perceber que Hugh ainda leva neste filme muitas características de seu personagem mais icônico, Wolverine: a barba por fazer, o gosto por uma boa cerveja – que toma em demasia – e o (mau) hábito de fumar. Será que na vida real Jackman fuma tanto assim?

O veterano Christopher Walken tem uma pequena, mas importante, participação em Voando Alto como Warren Sharp, o ex-técnico de Bronson Peary. Com uma aparência bem envelhecida, o personagem interpretado por Walken consegue transmitir ao público tanto a fragilidade de sua saúde física quanto da sua saúde emocional, devido à decepção tida com seu antigo pupilo.

A fotografia de George Richmond é muito boa, principalmente ao mostrar as lindíssimas paisagens das montanhas nevadas da Áustria e da Alemanha, onde parte do filme foi feito. Já a música de Matthew Margeson não tem nada demais, embora não seja ruim. Isso é compensado pelas canções da época que são tocadas, com destaque para Jump (saltar ou pular, em inglês), da banda de Hard Rock estadunidense Van Halen.

Eu só faço três restrições a Voando Alto. A primeira é quanto às cenas de salto de esqui. Elas estão muito boas, especialmente as que foram feitas com uma câmera no capacete, mas, estranhamente, não aparecem tanto quanto deviam. Parece que Dexter Fletcher ficou com medo de por mais cenas por achar que poderia exagerar. Mas, no melhor estilo Eddie Edwards, acabou exagerando, sim, mas de modo contrário: ao invés de ser demais, foi de menos.

A segunda restrição é sobre o vestuário de Hugh Jackman no filme. Enquanto todos estão com agasalhos pesados e, mesmo assim, morrendo de frio, Hugh, frequentemente, aparece vestido apenas com uma camisa social ou, no máximo com um agasalho leve. Tem-se a impressão que os produtores fizeram isso – mostrar a boa forma do astro – numa tentativa de atrair mais público feminino. Por favor, me poupem…

A terceira restrição que faço, como os leitores de minhas críticas já devem ter percebido, é, de novo, quanto ao horrível título nacional do filme. O título original em inglês é “Eddie, The Eagle”, que significa, literalmente, “Eddie, a Águia”. Porém, nossos brilhantes tradutores resolveram colocar o mesmo título de uma comédia chinfrim de 2003 estrelada por Gwyneth Paltrow (Homem de Ferro) e dirigida pelo brasileiro Bruno Barreto (Crô – O Filme). Isso vai, com certeza, causar confusão. Dá vontade de pegar esses mesmos tradutores, colocá-los no topo de uma rampa de 90 metros e empurrá-los para baixo sem os esquis.

Na vida real assim como no filme, Eddie Edwards lutava contra tudo e contra todos, mas, na maior parte das vezes, nem se tocava. Ele não ganhou nenhuma medalha nas Olimpíadas de Calgary – aliás, ficou em último lugar nas duas categorias nas quais competiu. Porém, pouquíssimos atletas encarnaram o ideal olímpico tão bem como ele. Isso leva a um dos méritos de Voando Alto, que é a sua mensagem edificante: para vencer não é necessário chegar em primeiro lugar ou conquistar uma medalha. Se acreditar em si mesmo e fizer o seu melhor, já será uma vitória e o reconhecimento, inevitavelmente, virá.

Voando Alto será um candidato ao Oscar? É cedo para dizer, mas eu acho muito difícil. Embora tenha a distribuição de grandes estúdios como a Fox e a Lionsgate, esta é uma produção independente. Sua premiére se deu no Festival de Sundance, o maior festival do cinema independente do mundo. E o seu primeiro prêmio foi conquistado em outro festival independente realizado nos EUA, o Heartland Film. Voando Alto conquistou o prêmio de Melhor Filme baseados em fatos reais dividido com Horas Decisivas (veja a crítica).

Voando Alto é daqueles filmes que conquistam corações e mentes, tal como seu protagonista. O seu exemplo sempre irá remeter ao já citado ideal olímpico. Para aqueles que não sabem, ele é assim: “O mais importante nos Jogos Olímpicos não é vencer, mas competir. O mais importante na vida não é conquistar, mas lutar com dignidade”.

Nesta época em que vivemos, na qual vencer, conquistar e derrotar o “outro” (diferente em aparência, modo, crença, pensamento), seja nos esportes, negócios e/ou política, é tudo, este ideal olímpico está mais atual e é mais necessário do que nunca.

P.S.: No Brasil são poucos os que sabem, mas essas Olimpíadas de Inverno foram registradas no documentário oficial do Comitê Olímpico Internacional (COI) chamado Calgary’ 88 – 16 Days of Glory (Calgary’ 88 – 16 Dias de Glória), e que tem a direção do premiado documentarista esportivo estadunidense Bud Greenspan (Wilma). Esse documentário de mais de três horas de duração pode ser encontrado na íntegra no site de vídeos YouTube.

Veja aqui um dos saltos do verdadeiro Eddie “A Águia” Edwards durante os Jogos Olímpicos de Inverno de 1988 (narração em polonês):

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