Críticas

Crítica | 50 Tons Mais Escuros

Filmar o sexo sempre foi uma questão profunda no cinema, desde Buñuel e as comédias americanas dos anos 30, há toda uma questão com a sexualidade e com o desejo, aquilo que deveria ou não ser mostrado. Com o passar do tempo e maior liberdade em relação à censura a indústria descobre o tema e o soft porn vira uma febre, principalmente nos anos 1980 e 1990, com alguns grandes sucessos de público como Uma Relação Pornográfica, 9 1/2 Semanas de Amor (1986) e Garotas Selvagens (1998).

O gênero, se é que pode ser chamado assim, ficou adormecido, as pessoas parecem ter se esquecido do sexo, ainda que seja o mote de alguns diretores autorais como Gaspar Noé, Lars Von Trier e Paul Verhoeven. Todavia, não mais que de repente surge o fenômeno 50 Tons de Cinza, ocupando todo mercado editorial e com seu primeiro filme desponta como uma franquia de sucesso. A questão é que nesse reaparecimento do soft porn parece que houve um esquecimento do que é o próprio sexo, procura-se a paixão, o instinto e a pulsão, elementos nunca encontrados nesse filme.

Em 50 Tons Mais Escuros, a continuação, há uma substituição da relação entre Anastasia e Chirstian Grey. Aqui não há mais o jogo de sedução, a cooptação daquele homem em relação àquela mulher, a conquista é deixada de lado para estabelecer um relacionamento. O filme é um retrato de como esse namoro pode sobreviver com as atitudes de Grey, seus traumas e suas obsessões. O recorte feito pela sequência de 50 Tons de Cinza é uma espécie de negociação, o relacionamento é retratado como uma discussão empresarial, em que uma das partes deve ceder em um ou outro ponto para que o contrato seja assinado. O sexo nesse novo longa é só um dos artifícios para essa negociação.

50 Tons Mais Escuros não é sobre paixões, impulsos muito menos sobre sexo, mas sim um filme de como dominar uma relação. O ato sexual é um meio, nesse mundo ficcional em que se pode comprar tudo e daí vem a felicidade, o sexo de Grey é como se fosse um cartão de crédito que pode comprar fisicamente e emocionalmente sua namorado. Em 50 Tons Mais Escuros esse ato é quase alienante, é incrível como em todos os momentos que o filme caminha para questionar as atitudes de Grey (que são extremamente questionáveis), quando parece que aquela figura será destronada, Jamie Dornan tira sua camisa, mostra suas cicatrizes junto com seus músculos, Anastasia se excita e Dakota Johnson também tira sua roupa, as questões colocadas anteriormente são esquecidas, o sexo serve para amortizar e ameziar o questionável, o sexo aqui é um artifício para ludibriar tanto sua protagonista feminina quanto o espectador.

Essa relação é sentida até mesmo da forma em que o sexo é representado. Aquilo nunca aproxima-se do real, parece que a todo momento os realizadores estão escondendo o sexo para que não demonstre sua irrealidade. A música pop que entra a cada transa como se as sequências fossem embaladas pelos sons e não pelo desejo dos personagens; a atuação exagerada de Dornan e Jonhson que gemem e se movem violentamente mas parecem nunca possuírem envolvimento, nunca demonstram por uma simples troca de olhares o que sentem; ou pela montagem que motiva seu corte não pelo ritmo cênico, mas sim para não mostrar de mais de seus atores, e isso fica evidente. O sexo é mais uma enganação, mais uma negociação do filme, como se o peitoral de Dornan e os seios de Jonhson estivessem no pacote de quem paga o ingresso.

O que resta desse soft porn sem o seu sexo mal encenado é a constação de uma visão de mundo totalmente estranha, sempre ligado a uma lógica dominação e da negociação, o amor nunca é um te amo, mas sim um “sou toda sua”, numa objetificação total daquele relacionamento. A grande figura desse universo é a de Grey, garoto mimado que pode tudo, que compra qualquer empresa e até sua mulher, seja com dinheiro ou com seu sexo. O pensamento obsessivo e possessivo é retratado como um charme, quando só é possível pensar como aquele personagem não é o vilão daquela história.

Se constatar na figura de Grey uma inversão de valores enorme, o sistema de representações de 50 Tons é extremamente delicado, no mal sentido. Um dos novos personagens, Jack, novo chefe de Anastasia é representado como um homem de segundas intenções sempre interessado nos atributos físicos de sua assistente. Grey nutre um ciúme, que num relacionamento normal seria abusivo, ameaça o homem de morte, impede sua namorada de viajar a trabalho, entre outras coisas. O grande problema é que constatando que Jack é realmente outro homem que não presta o filme valida de alguma forma os atos de Grey, como se ele só tivesse defendendo, de fato, sua namorada. O ciúme que poderia ser lido como possessivo transforma-se em carinho e proteção. O que 50 Tons não percebe é que tanto Grey quanto Jack são dois lados de um mesmo abuso.

Outra representação problemática é de Leila, uma ex-submissa de Grey, que passa a perseguir Anastasia. Para Leila, Anastasia é uma inimiga, seu desejo por Grey e pelo tempo que passaram juntos fazem dela uma figura psicótica, duas mulheres tornando-se inimigas por causa de um homem é um dos maiores clichês do machismo. Também parece claro é que essa dependência emocional de Leila e sua rivalidade com Anastasia tem como denominador comum Christian Grey, mas em momento algum o protagonista é apontado como a causa desses problemas, a não ser a constatação de que as noites com Grey são tão boas que são difíceis largá-las. Isso fica claro, por exemplo, quando Grey vai acalmar Leila e ele realmente parece domar aquela mulher em um surto psicótico, sem força física ele a coloca no chão como se fosse um domador. 50 Tons Mais Escuros e Grey se resume a isso, um homem que domina essas negociações humanas através do sexo.

Se intelectualmente 50 Tons Mais Escuros demonstra todos esses problemas não se pode dizer nem que é um filme bem realizado. Do trabalho de James Foley na direção ao roteiro adaptado de Niall Leonard, passando pelas atuações, principalmente do elenco de apoio (que conta até com Kim Bassinger), tudo parece uma grande novela. Esse ar novelesco acidental deixa o filme à beira do risível em muitos momentos, com Grey se salvando de um desastre aéreo e surgindo do nada em sua casa poderia ser um momento visto numa novela mexicana reexibida a tarde na TV aberta. Se o filme não tem timing nem em suas cenas pretensamente excitantes, na obra como um todo isso fica aquém de um longa que almeja ser apenas regular. 50 Tons Mais Escuros parece acreditar que suas cenas de sexo, sua negociação com o espectador, faça com que todos seus equívocos sejam esquecidos. Algo que evidentemente não acontece.

50 Tons Mais Escuros demonstra que nesse período de adormecimento do soft porn o que houve foi um esquecimento do sexo em si. No longa, e nesse grande sucesso sexual, o ato é pensado como mais uma relação comercial, como uma simples negociação, perde-se completamente o desejo ou a pulsão. E se no longa é difícil encontrar ao menos uma cena bem feita dos momentos mais quentes, é esperar demais que houvesse algum pensamento mais profundo por trás do sexo comercial de Grey e Anastasia.

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