Críticas

Crítica | O Rastro

Não! O cinema de terror brasileiro não é mais uma novidade. Evidente que ainda não há uma solidez dentro da feitura dos filmes do gênero, mas é totalmente identificável fortes esforços para a realização desse tipo de filme, algo que já acontece em pelo menos uma década de cinema brasileiro. Realizadores como Rodrigo Aragão (Mangue Negro), Dennison Ramalho (que participou da antologia ABC da Morte 2), os parceiros Rodrigo Gasparini e Dante Vescio (O Diabo Mora Aqui) e os mais notáveis, a dupla Juliana Rojas e Marco Dutra (Trabalhar Cansa – juntos -, Sinfonia da Necrópole e Quando Eu Era Vivo – separados) comprovam esse esforço do cinema de horror por aqui, isso sem contar a produção de curtas-metragens e da filmografia do padrinho do gênero no Brasil, José Mojica Marins, o eterno Zé do Caixão.

Se ainda há uma defasagem na relação entre obras e espectadores, isso está inserido numa problemática muito maior, que é a complexa cadeia de produção, distribuição e exibição para filmes nacionais. Assim, terror por aqui segue para sua maturidade, alguns filmes com qualidade técnica, outras com abordagens criativas, uns ruins, outros bons, como em qualquer outra filmografia ou qualquer outro gênero. O Rastro, novo filme de terror, chega aos cinemas nessa conjuntura, quando o terror encontra-se num patamar muito mais alto, acreditar estar fazendo algo novo só porque é cinema de gênero no Brasil é superestimar o próprio filme e subestimar o que tem sido feito até agora. Essa ingenuidade não garante o sucesso nem de crítica, nem de público, de nenhum filme.

O longa, dirigido pelo estreante J. C. Feyer e escrito pela também estreante Beatriz Manella e por André Pereira (de Mato Sem Cachorro), conta a história de um jovem médico, João Rocha (Rafel Cardoso), que tem a missão de esvaziar um hospital prestes a ser fechado por falta de verba. No processo ele percebe que uma garota sumiu durante a transferência, a menina passa atormentar os pensamentos do protagonista, fazendo com que ele parta para uma busca incessante por algum rastro daquela paciente, levando-o aos lados mais obscuros do hospital e da rede de saúde pública.

O Rastro carrega uma forte característica do terror psicológico, trabalhando a questão do medo e da paranoia como portas a um mundo propício ao terror. Essa talvez seja a característica mais potente de O Rastro, fazendo com que a trajetória interna do personagem reflita na tela. Nessa esfera, João está prestes a ser pai, sua esposa (Leandra Leal), está numa gestação avançada, e o medo pela perda de uma garotinha ganha esse desdobramento interno do protagonista. Num primeiro momento, o filme faz um interessante paralelo entre o medo e a busca pelos vestígios daquela menina, e uma característica muito fortes daquele personagem, o fato de ser responsável por outra pessoa, tanto na sua profissão, quanto na paternidade que o aguarda.

É nesse sentido que surge um ponto interessante em O Rastro, a atuação de Leal interpretando Leila. A atriz reforça esse ponto do cuidado em relação ao outro, como se tivesse algo intrínseco a ela que não é apresentado em João. Leal por muitas vezes constrói gestos que demonstram esse cuidado em relação ao filho que gesta e ao próprio marido, uma gestual realizado com as mãos que envolvem sua barriga ou acaricia João. Leandra Leal estabelece sua performance numa chave muito diferente do restante do elenco, o que faz com que ela se sobressaia ainda mais, enquanto sua personagem diz o que sente com o gestual, os demais falam sem parar, numa constante explanação de informações.

Muito disso se deve em conta das opções e rumos que o roteiro de O Rastro segue após sua primeira metade. Há um momento no longa que essa substância psicológica é deixada de lado para que o protagonista entre e perceba uma rede de intrigas dentro do sistema de saúde. Essa transição entre o horror psicológico quase sobrenatural para uma espécie de thriller político ocorre de maneira bastante truncada. Como se tudo tivesse que ser recontado para o espectador, seguindo uma série de explicações dadas através de uma série de diálogos. O Rastro torna-se uma verborragia incessante, trocando as sensações que eram vividas pelo protagonista por uma racionalização, para que, assim, seja possível a construção de reviravoltas pretensamente surpreendentes. Numa operação que retira a carga sensorial do terror em detrimento da crença nas surpresas texto fílmico.

Dessa forma, O Rastro vai se perdendo em suas pretensões narrativas, acreditando que possa surpreender o espectador. Fato é que sem uma narrativa fluída e bem trabalhada as imprecisões do longa ficam extremamente evidente. O longa é tomado por um sentimento de deixar evidente suas raízes do cinema de gênero que atrai público atualmente. Os realizadores, principalmente Feyer, são tomados por um desejo de carregar o visual da obra de uma afetação estética e técnica – um filme que busca demonstrar seu valor de produção, sua capacidade de ser como os estrangeiros. No entanto, essas opções visuais são baseadas em tudo que já deu certo, nos caminhos mais óbvios do cinema de horror, aquele que busca uma assimilação rápida do espectador e assim torna-se mais genérico do que efetivamente potente.

Os enquadramentos diferenciados que não demonstram nada além de uma busca por estranhamento, que pode funcionar das duas primeiras vezes que surgem, mas enfraquecem-se com o decorrer do longa, ou os planos próximos dos rostos do personagem na representação mais óbvia de uma opressão visual. Isso sem contar a banda sonora, extremamente barulhenta, que força uma tensão para o público até quando é necessário que seja assimilado, através do silêncio, o suspense visto em cena. Há também os claros jumpscares, que não comprovam de forma alguma a eficiência do terror, mas sim a surpresa de um susto isolado, que poderia ter o mesmo efeito distanciado de qualquer narrativa.

Essa dificuldade de se diferenciar quanto a concepção visual de cinema de horror (e o cinema de gênero está completamente ligado com o exercício formal dos procedimentos cinematográficos) está presente tanto na primeira parte, mais psicológica, quanto na segunda, mais política. Todavia, nesse segundo momento as opções estéticas parecem ainda mais forçadas, embutindo com violência um senso de tensão e terror muito pouco presente na trama e no filme como um todo. Além disso, há uma dificuldade em acreditar na narrativa do thriller quanto uma espécie de crítica política, um filme que demonstra certo despreparo nesse sentido. Na confusão de apresentar uma série de informações que se conectariam com o mundo real, aliado ao clima de tensão incessante (até quando é desnecessário), o filme constrói uma série de superficialidade, mostrando pouca sapiência dos temas sociais abordados, num discurso calcado no senso comum, e provocando um maior distanciamento da esfera que mais funcionava dentro do longa.

O Rastro, dessa maneira, no meio de sua narrativa, desperdiça seu terror mais potente, e, que sem dúvida, mais atingia as sensações de sua audiência. Há uma confusão do terror que o longa realmente quer mostrar, uma certa insegurança e incerteza dentro do gênero que se insere. O cinema de horror não dá espaço para inocências, e aqui no Brasil já se passou a fase de que a novidade se dava apenas por ser um filme de gênero.

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