Críticas

Crítica | O Filme da Minha Vida

O cinema como centro de um filme, essa não é uma situação anormal e talvez seja o grande o centro de discussões cinematográficas num âmbito mais moderno e contemporâneo. Desvendar essas imagens em movimento parece a preocupação máxima do cinema pós-anos 1960. Essa abordagem pode se dar de duas formas distintas: de forma conceitual – como faz Goddard, por exemplo, ou através da paixão e do encantamento diante do cinema, dos filmes e da sua experiência. O novo filme de Selton Mello está inserido justamente nesse segundo ponto, reavaliando a força cinematográfica através de suas relações afetivas.

O Filme da Minha Vida é uma obra sobre como o cinema pode reorganizar as relações de um homem, como os laços são reforçados por essa experiência coletiva que alude aos sonhos mais humanos. O longa pode ser interpretado também como a transformação de um drama comum em cinema, a vida transformada em filme, dessa forma, seria alguém que imagina a sua própria trajetória de forma cinematográfica, de forma que apresente sua narrativa distante do viés naturalista, realista ou algo que os aparatos do cinema passem desapercebido. O longa faz com que a história por mais comum que seja – e isso não é uma falha – receba toda a cara do cinema, demonstre essa caracterização cinematográfica, como se o protagonista recontasse sua trajetória com olhos de cinema.

Dessa forma, O Filme da Minha Vida utiliza figuras características de um universo cinematográfico para compor sua narrativa: homens vestidos de chapéus como se estivessem saindo de um western; musas que surgem intactas com seus batons vermelhos; rapazes e garotas subindo em suas motos com jaquetas de couro – algo saído diretamente de Juventude Transviada e até um trio cômico de adolescentes que poderia ser um grupo de clowns como foram O Gordo e o Magro. O Filme da Minha Vida é uma obra sobre uma vida representada através de uma ideia bem específica de cinema, uma história imaginada, como se alguém se representasse através de todo repertório de filmes vistos e revistos, filmados e refilmados ao longo da história.

A grande questão passa a ser qual é esse cinema específico e como ele é colocado no centro dessa narrativa. Se o filme traz a história de um garoto que ao voltar para sua cidade natal descobre que o pai saiu de casa e aparentemente voltou à França. O longa se desenrola a partir do convívio do garoto com essa repentina saída do pai e a tentativa de lidar agora com suas responsabilidades adultas. O protagonista deve sustentar suas responsabilidades ao mesmo tempo que equilibra seus afetos. Nessa jornada, o jovem encontra figuras como Luna, uma garota apaixonada por ele; Petra, irmã de seu affair e dona de uma beleza impactante; Paco, grande amigo de seu pai, totalmente diferente do protagonista e uma espécie de conselheiro rude. Mais do que essa jornada, como já dito, o filme está preocupado em apresentar essa narrativa como se fosse uma história de cinema, é como se fosse algo contado depois de muito tempo com toda carga imaginativa que só o cinema pode atribuir.

Para Selton Mello o cinema é essa constante imaginação, onde tudo parece irreal, onde o cinema é a romantização quase constante, onde o fim sempre é belo. Se essa é uma definição consciente do autor e de sua obra, também chega a tela de forma meio truncada, como se fosse uma visão despejada na projeção, enquadrada para que isso surja como uma verdade absoluta. O Filme da Minha Vida coloca todos pensamentos nessa visão em um processo nada sutil, tudo deve ser mágico e belo, o tempo todo, algo que por muitas vezes torna-se apenas sufocante.

Se as personagens são construídas em cima de figuras cinematográficas praticamente arquetípicas, o longa não consegue atravessar essa barreira do símbolo, os personagens de O Filme da Minha Vida são imagens pré-concebidas que circulam por aquela cidade cinematográfica. O que falta é justamente a unificação entre seres únicos que poderiam ser apresentados como figuras de cinema, essa primeira parte se perde, e o que resta são corpos reproduzindo aquilo que massifcantemente já foi reproduzido. O mesmo ocorre, por exemplo, na atuação desses personagens, principalmente no protagonista, Johnny Massaro, que parece ter a necessidade de sussurrar cada frase dita, como se estivesse declamando a mais alta poesia, mesmo quando o diálogo é o mais banal possível.

Essa pretensão está embutida em toda a obra, uma tentativa de levar essa atmosfera lúdica do cinema em todos os momentos. Isso faz com que o longa deixe em evidência toda essa relação entre narrativa e cinema, como se esta última estivesse muito acima da primeira. O roteiro do filme faz com que a narrativa seja construída em blocos que deveriam estar amarrados uns aos outros – é um filme pretensamente narrativo e clássico – mas a impressão é que os realizadores estão mais preocupados com as situações e não com o todo. O Filme da Minha Vida se preocupa em demonstrar sua habilidade em alguns momentos, evidenciando essa potência do sonho no cinema, mas isso nunca dá unidade ao longa, como se os fragmentos belos estivessem em dissonância.

Hiperbólico, O Filme da Minha Vida tem como a beleza o seu grande objetivo, o encantamento do cinema e da vida seria esse conceito de belo, algo totalmente evidente na fotografia de Walter Carvalho. Dessa forma, também revelando o pensamento do que é cinema para o longa, uma obra pautada por uma ideia de bom gosto, em que cada plano deve estar perfeitamente fotografado com uma iluminação única, onde cada segundo atinge essa beleza técnica da fotografia. Todavia, num descompasso em que tudo se torna belo, não há espaço para essas imagens se relacionarem com suas narrativas, como se a estética fosse mais um desvio do olhar, um adorno que tira o peso de sua essência para revelar qual é essa paixão pelo cinema.

Se O Filme da Minha Vida expõe pensamentos e até honestidade acerca do cinema que deseja falar, o longa é faz essa sua jornada ao encantamento do cinema ser um percurso da absorção, em que no final o longa, a narrativa e toda sua essência sejam engolidos por essa paixão. O Filme da Minha Vida perde-se no encantamento cinematográfico.

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