Críticas

Crítica | Os Pobres Diabos

“A extrema divisão do trabalho manual e intelectual, a Ciência e, mais ainda do que esta, os discursos ideológicos e as faixas domesticadas do senso comum preenchem hoje o imenso vazio deixado pelas mitologias (…) Furtou-se à vontade mitopoética aquele poder originário de nomear, de com-preender a natureza e os homens, poder de suplência e união. As almas e os objetos foram assumidos, e guiados, no agir cotidiano, pelos mecanismos do interesse, da produtividade; e o seu valor foi se medindo quase que automaticamente pela posição que ocupam na hierarquia de classe ou status. Os tempos foram ficando egoístas e abstratos. (…) Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender.”

Assim o crítico literário Alfredo Bósi descreve esse abandono e invisibilização da poesia em meio a “sociedade de consumo”, sociedade comandada pela lógica da produção capitalista e para a qual a poesia parece um “luxo cultural supérfluo”, improdutivo, bem como parecem todas as humanidades, na definição de historiador Osvaldo Coggiola em um texto para o Estadão: “as humanidades seriam incapazes de conclusões exatas e de prognósticos precisos, de ‘gerar tecnologia’, em suma, não seriam ‘científicas’ ou mesmo ‘úteis'”, completa.

Este tema parece ser o melhor trabalhado em Os Pobres Diabos daqueles que são abordados em seu roteiro. Escrito e dirigido por Rosemberg Cariry, esse nos conta a estadia de um circo em uma cidade do interior cearense, durante a qual interpretarão em uma peça a ida do cangaçeiro Lamparina – o mais temido do sertão, obviamente remetendo a Lampião – ao inferno. Contudo, passam por tempos difíceis, nos quais suas vocações artísticas e prazer no fazer da arte são reprimidos pela baixa temporada e pouca renda obtida pelo circo. Logo, vivem o dilema de abandonar ou não a carreira circense.

O próprio ruir das finanças do circo já é, por si só, uma símbolo para esse silenciamento e isolamento da arte e da poesia em meio a sociedade de mercado. Mas, mesmo assim, Os Pobres Diabos consegue pensar este tema também com outras metáforas dentro do filme, o expondo inclusive em algumas das falas. É o melhor trabalhado também pois este é, dos temas, isoladamente o mais essencial para compreensão da trama – se tornando quase que inerente a ela, de longe sem ser trabalhado de forma avulsa ou deslocada.

O longa ainda pensa em outros temas, como a corrupção da democracia por parte da elite econômica – muito destacado na obra sobre a ida de Lamparina ao inferno -, a desigualdade e exploração social, a vida no interior nordestino e até mesmo a identidade deste local… Além de outros temas mais líricos, já que o lirismo se faz consideravelmente presente no argumento do filme: amores platônicos, a entrega à arte e outros tópicos que fazem com que Os Pobres Diabos soe romântico – contudo sem pieguices ou melodramas desajustados.

Mas é preciso dizer que, para tornar esta crítica mais didática, pretendo separar o filme em dois momentos: o anterior ao início da encenação da peça de Lamparina e o posterior. Digo isto pois Os Pobres Diabos tem atuações de estilo à comédia teatral, com toda aquela extravagância que, posta no cinema, parece soar caricata – e no fim das contas o é. Logo, preparar uma tragédia com entornos realistas não seria levada a sério com tais atuações. E é justamente esta impressão que prevalece na “primeira parte” do longa.

Contudo, apenas as atuações não são as únicas questões a serem levadas a cabo sobre esta primeira parte: ela soa arrastada, sem saber estabelecer muito bem os dramas ali encarnados – a ligação dos atores com o circo e com a arte, os casos de amor e paixão, as rivalidades… todas essas ligações são colocadas com certa superficialidade, fazendo com suas intensidades sejam representadas aquém da ideia original – e, com isso, dificultando sua leitura e contemplação. Todavia, um fator que incrementa para a expressividade e maravilhamento em Os Pobres Diabos é a sua fotografia, que com as cores saturadas e visuais épicos impõem com beleza e idealização a secura e ardência do sofrimento, pelos destinos do circo e pelas dificuldades pessoais e sociais, vivido pelos protagonistas – metaforizada nos cenários ásperos do sertão. Essa sacralização dos sofrimentos dos protagonistas é intensificada pela presença dos símbolos cristãos na história, comparando a dor dos artistas nordestinos à dor mitológica cristã – o que é um dos pontos altos do filme.

Mas os problemas se reduzem na segunda parte do longa, quando o filme passa a nos apresentar a história da ida de Lamparina ao inferno atrelada a história da narrativa principal com simultaneidade. Parece que a peça de teatro se mescla com as cenas de “realidade” do longa, e tudo se torna uma peça teatral – como bem propõe o título do longa. Aqui, neste momento, já há maior sentido em atuações caricatas, que traduzam com didatismo e extravagância os sentimentos e as intrigas da trama. Se torna muito mais penetrante justamente pois, com estes artifícios teatrais, dramatizam muito melhor tudo aquilo que até então era colocado com superficialidade e, assim, recuperam aquela intensidade que outrora não soava legítima. Além do mais, nesta segunda metade de Os Pobres Diabos se estabelece um desenrolar da narrativa mais orgânico e menos forçado, e suas críticas sociais são melhor defendidas. O fim do longa o faz mais empático.

Pode não ser ainda uma obra prima, mesmo tendo em vista somente a segunda parte. Ele oscila entre momentos mais catárticos e outros mal resolutos, arrastados. Mas, ao fim das contas, há questões em Os Pobres Diabos muito interessantes e simbólicas, e que fazem com que este não seja um filme que mereça puros descréditos.

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