Críticas

Mostra SP | Crítica: As Boas Maneiras

Atualmente pede-se para o bom cinema de terror inserir-se na onda do pós-terror, algo que funciona muito mais como uma terminologia do que realmente uma definição interessante de uma geração, porém clama-se por um cinema de gênero do não terror, da profundidade temática, da utilização dos poucos sustos, da atmosfera bem trabalhada e um realismo narrativo, algo que sempre existiu dentro da variedade do gênero. Nessa profusão de modismos, de expectativas em cima de algo que parece ser a alta-cultura do terror, pede-se densidade, mas então dois cineastas brasileiros, Juliana Rojas e Marco Dutra (Trabalhar Cansa, 2011), realizam uma fábula trash que abraça o lado mais absurdo, cômico e fantasioso do universo do horror. Uma das obras mais inventivas do cinema de gênero dentro de uma perspectiva internacional.

Os prêmios em Locarno poderiam bem comprovar isso, mas basta assistir ao filme para ter certeza dessa afirmação. As Boas Maneiras conta a história de Ana (Marjorie Estiano) que contrata uma funcionária para cuidar do filho que está por vir, essa mulher é Clara (Isabél Zuaa), uma moça de origem humilde, que mora do outro lado da ponte e deseja trabalhar na suntuosa residência de Ana, nos altos prédios que beiram a Marginal Pinheiros, distante de qualquer realidade social. Ao passar do tempo, Clara e Ana vão nutrindo uma relação muito próxima, compartilhando emoções, cuidados e sensações, uma relação de total cumplicidade. Mas Clara, a mais que babá, passa a perceber um comportamento estranho de Ana durante as noites de lua cheia, uma sede por sangue, os olhos que brilham a noite e a encarnação de um monstro com a moça. Algo totalmente ligado ao bebê que carrega, um feto lobo, que se manifesta naquelas noites com a presença da lua. Um dilema para as duas mulheres, que desejam manter seu amor por uma criança assombrada.

Nesse primeiro momento, As Boas Maneiras constrói a ideia fantasiosa da fábula, esse local de classe alta paulistana é representado como um castelo, um lugar de sonhos, propício a essa fantasia, cores exuberantes e paisagens artificias da cidade que tiram qualquer ar realista daquela narrativa. Em tempos que se pede um aprofundamento psicológico do terror (algo que se encontra em outros trabalhos da dupla), Dutra e Rojas parecem buscar referências em um outro tipo de horror, há nesse primeiro ponto uma forte carga de uma herança de Roger Corman, na sua fase mais interessante onde realiza um terror gótico com Vincent Price. Tanto em Corman, quanto em As Boas Maneiras é ressaltada essa construção cênica, um mundo que propositalmente aparenta não ser real, que habita outro plano, aquele da ficção. Esse palacete paulista é fruto de uma grande parcela imaginativa, onde a fabula se mistura com o horror, onde lobisomens podem estar em cômodos de princesa (nem se esta for a filha de um latifundiário goiano). Assim, como fazia também o mestre do horror B, o longa brasileiro abre espaço para o rico diálogo entre a comédia e o terror, algo que requer muita habilidade.

As Boas Maneiras tem essa veia cômica muito presente, sem que isso afaste seu lado horripilante, como também enriqueça seu universo, uma ficção que surpreende por seu tom, despretensioso divertindo-se com o próprio filme. O longa remete dessa forma há um filme de gênero realizado para o grande público, com uma grande dose de entretenimento, longe da pretensão dos pós-terror, distante também dos jumpscares dos blockbusters atuais, mas
extremamente próximo do gênero que habitava madrugadas na televisão aberta há anos atrás.

O longa abraça um terror que até hoje é relegado a um segundo plano, aquele do filme afeito ao sangue gráfico, aquele da trasheira assumida, aquele de figuras horrendas e asquerosas construídas através de miniaturas e efeitos especiais e aquele que abraça seu lado cômico. O filme remete a autores que até hoje não recebem o devido reconhecimento pelo seu horror considerado rasteiro ou sua preocupação popular, de Brian Yuzna a Richard Donner, passando por Joe Dante e John Landis, nomes com certeza vistos em alguma sessão de terror, ou até mesmo um filme divertido na sessão da tarde que trazia fortes características do horror.

O longa ainda se torna mais interessante após uma virada central e a narrativa se concentra na casa de Clara, do outro lado do Rio Pinheiros, fazendo com que o verso dos Racionais MC’s ganhe outro sentido, em As Boas Maneiras o mundo fica extremamente diferente da ponte para cá. Agora o que dá a tônica é um realismo fantástico, o mundo onírico e fantasioso fica do outro lado do rio, distante mas visível. Enquanto o lugar onde se desenrola a ação possui algo mais próximo a realidade periférica, onde se manifesta o fantasioso trazido daquele outro lado. No entanto, ainda com esse realismo, a fábula de As Boas Maneiras não se perde, uma vez que o ponto de vista passa a ser de uma criança, fazendo com que o roteiro ganhe ainda mais esse tom fabulesco.

As Boas Maneiras possui esse caráter de fantasia infantil, um mundo de sonho pautado por uma imaginação inocente, algo materializado, por exemplo, na situação de duas crianças presas em um shopping, algo que passa a ser uma grande e excitante aventura. Essa narrativa prazerosa que lembra até mesmo um clássico Disney, não perde em momento algum seu caráter autoral, só da mescla de experiências isso ficaria visível, mas Rojas e Dutra ainda abrem espaços para canções encenadas pelos atores num cântico coral, totalmente diferente, que comenta e participa da narrativa, incomum e interessante.

O mais potente é que As Boas Maneiras nunca passa a ser só um exercício de gênero ou mera reprodução autoral, se o longa é uma fábula ali também há sua moral, uma narrativa que se utiliza de sua fantasia e as imagens do terror para falar sobre a relação maternal – temática que surge em outros trabalhos da dupla, ou em obras independentes dos dois diretores. E o comentário de se doar por uma criatura que pode não ser bem-vinda é belo, ainda mais com essa aura fabulesca, não fazendo com que o filme se preocupe se discurso A ou B poderia soar brega. As Boas Maneiras, assim como uma fábula, é um filme de fantasias e sentimentos.

O longa ainda consegue ser realmente pensado por um viés bastante regional, algo não só marcado por esse choque entre classes em locais tão próximos, mas até mesmo o humor retirado de fatos totalmente brasileiros como a música sertaneja universitária escutada no palácio de Ana, a figura folclórica do lobisomem, o imaginário brasileiro do shopping como uma floresta mágica e assim por diante. As Boas Maneiras é também uma visão extremamente inventiva de uma São Paulo fantástica, mas sobretudo uma narrativa consideravelmente madura sobre o cinema de gênero e suas mais diversas influências. Um filme que condensa estilos numa história envolvente, diferente e surpreendente, uma obra que não precisa estar afeitos aos modismos e abraça a fantasia e o terror que gosta. As Boas Maneiras é uma grande fábula cinematográfica e um dos melhores exemplares do cinema fantástico.

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