Críticas

Mostra SP | Crítica: Custódia

Custódia é um filme, antes de tudo, interessante, uma forma muito consciente de colocar sua temática dentro de um jogo cinematográfico de claro envolvimento e manipulação psicológica. Um filme que se utiliza dos aparatos cinematográficos para colocar em seu discurso a questão da violência doméstica e seu constante assombro, uma obra que trata como deve tratar um relacionamento abusivo.

O longa tem uma habilidade ao não entregar seus pontos logo de início, um filme de relações humanas que vão ficando claras ao longo dessa narrativa. Uma estratégia de roteiro, com certeza, mas que aqui está completamente ligada ao seu objeto temático, possuindo uma compreensão que deve acontecer de fora para dentro, um movimento psicológico que deve partir do espectador. Logo, o que se tem acesso no início de Custódia é um lugar comum sobre uma relação que parece simplesmente conturbada. Algo que será totalmente mudado quando o espectador finalmente consegue se inserir dentro das questões que envolvem uma família.

O longa acompanha a história de Jean, um garoto de 12 anos, que tem sua guarda discutida pelos dois pais. O que se vê é uma estranha repulsa por parte do garoto em relação a seu progenitor, acusando até mesmo de ser um homem agressivo com sua mãe e irmã. Algo sempre afirmado pro sua mãe que ressalta a verdade nas acusações do garoto. O ponto de partida de Custódia é justamente quando esse homem consegue compartilhar a guarda com sua ex-esposa. As primeiras coisas que vêm na cabeça quando se acompanha a narrativa é justamente questionar e principalmente duvidar daquele discurso.

Passa pela cabeça do espectador indagações acerca de algum tipo de alienação parental, uma vez que o discurso do garoto é tão absurdo e violento que chega a parecer fruto de uma narrativa adulta. Até mesmo algum tipo de recriação de uma rivalidade masculina entre pai e filho, disputando a mesma mulher, numa possível relação edipiana. E o que fica é a auto indignação em relação à dúvida da possibilidade mais óbvia: que tanto mãe quanto filho poderiam simplesmente estar falando a verdade. Ou seja, há uma provocação em torna da questionabilidade dos fatos, como é fácil duvidar dessa narrativa descrita por aqueles personagens.

Essa relação não é arbitrária ou fruto de um desconhecimento do público, mas algo armado conscientemente pelo roteirista e diretor Xavier Legrand, suprindo informações iniciais para mostrar a realidade dos fatos aos poucos, deixando seu espectador se enganar e se espantar com o julgamento induzido. Algo que já fica bastante claro na cena inicial, uma audiência, em que a mãe e Jean colocam para fora todo seu desejo de distanciamento com o pai, enquanto o homem faz questão de ressaltar o quanto sua distância com os filhos foi imposta por sua ex-mulher. Obrigados a ficarem lado a lado, mãe, pai e espectador ouvem: “Não sei qual de vocês é o mais mentiroso”. Uma afirmação que pauta a relação entre espectador e público por cerca de 2/3 do filme.

O que se vê são momentos que tentam responder a pergunta da juíza, explicando pouco a pouco, qual é a verdadeira relação daquela família. O ponto de vista infantil ajuda nesse sentido, a câmera quase sempre grudada próximo ao garoto faz com que nem todas as informações sejam dadas, para que cada peça seja juntada aos poucos, para finalmente o público ter certeza do julgamento que fez em relação àqueles personagens e a real violência dos fatos.

O terceiro ato do filme, quando as peças são finalmente colocadas a mesa, Custódia transforma-se num filme incrivelmente tenso, que faz com que se trabalhe com um suspense crescente e uma agonia que só termina com a chegada dos letreiros. Por aquela dúvida inicial, surge ao longo do filme uma identificação enorme com aqueles personagens, uma relação de culpa em relação ao que se vê, o que é infalível nesse jogo psicológico no fim do longa.

Custódia é um suspense de primeira linha, que demonstra compreender todas as lições desse estilo, da tensão crescente, ao incrível trabalho de adesão psicológica. Aqui reside justamente a grande força do filme, essa indução da plateia de modo muito sutil, que desloca o espectador para um filme extremamente tenso e violento, um filme que chega a exaurir todas as forças de sua plateia. Pode-se até acusar Custódia de algum maniqueísmo, ou uma indução muito forte do espectador, todavia deve entender o filme como uma obra de artifícios, algo extremamente ligado ao suspense, uma obra que deixa seu realismo aparente, mas que demonstra esse rebuscamento no trabalho dos mecanismos cinematográficos.

Custódia pode muito bem trazer todas as regras hitchcockianas, aliás cineasta que hoje tem um estilo reconhecido, mas sempre trouxe em sua fórmula autoral uma grande carga por transparecer real, para que passasse um sentimento de verdade em sua audiência. O longa francês opera da mesma maneira, envolve o espectador para colocar todos seus pontos, fazendo com que o drama de uma família torne-se o do público, fazendo com que a tensão vista ali remeta a uma realidade fora da sala de cinema.

O trabalho de Legrand é formidável, retirando tensão por exemplo de uma festa que só toca músicas animadas, mas a montagem bem armada, o jogo de luzes que fazem as personagens entrarem num jogo de claro e escuro frenético e um perigo que parece observar toda uma família, retira suspense utilizando elementos de um momento que costuma remeter a felicidade. Há também um ótimo trabalho sonoro, que trabalha nesse acúmulo de tensões, como em uma sequência que o garoto foge de seu pai e um barulho de motor automobilístico vai ficando mais presente, dando a sensação que o personagem está sempre próximo ao perigo mesmo afastando-se daquele homem perigoso. E uma ótima relação construída, onde coloca o espectador como um observador, uma figura voyeur que assiste àquela história sem poder entendê-la por completo até seu final e sem poder participar, como se sentisse sua violência por reflexo, como explica bem o último e interessante plano do filme.

Esses são elementos de um filme devoto a uma interessante prática cinematográfica, e fazer isso com eficiência é por si só um grande mérito, o envolvimento psicológico realizado por Custódia é digno de um diretor maduro, digno de defesa, ainda mais por conseguir traduzir um tema importante através de ferramentas audiovisuais. O longa, dessa forma, não é nem apenas uma obra de artifícios cinematográficos, muito menos um título carregado apenas por um realismo social crítico, mas sim um filme que consegue unir esses dois traços, fazendo assim um grande exemplar de cinema, importante e muito bem realizado.

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