Críticas

Mostra SP | Crítica: El Inca

El Inca, o representante ao Oscar pela Venezuela, narra a trajetória meteórica de Edwin “El Inca” Valero, o maior pugilista dos andes venezuelanos, um rapaz que subiu na vida de maneira muito rápida, mas sua queda foi tão inesperada e surpreendente quanto sua ascensão. El Inca é um filme que traz toda a história do pugilista, ficando entre o retrato de um fã que certamente vibrava com suas vitórias, como uma tentativa de explicar os motivos de sua derrocada, entre o julgamento e a condescendência.

O longa começa pelo final, numa pequena cena em que o protagonista, claramente atormentado, diz ter matado sua esposa, ele muda o discurso algumas vezes, mas logo percebe-se que alguma tragédia foi provocada por ele. Pensando que o filme nasce predestinado ao público venezuelano, claramente há um jogo entre o que já é sabido por todos e a revelação da intimidade de Edwin Valero, dessa forma, o filme parte da fato conhecido por todos para depois retroceder no tempo e contar a trajetória do esportista desde seu começo.

El Inca mostra a juventude pobre de Edwin, um garoto que vive numa pequena cidade venezuelana, dormindo no ginásio onde treina e se desdobrando para pagar as contas de sua mãe. Entre esforços virtuosos, uma habilidade incomum e um gênio explosivo, Valero é representado como uma figura sempre no limiar entre um homem cheio de virtudes, como também um garoto problema, que vai para a prisão às vésperas de um campeonato importante. Um filme que até certo ponto parece ser justamente sobre passar por cima de problemas pessoais em função do esporte, uma luta com ele mesmo que refletiria na sua performance nos rings, o clichê dos filmes de esporte, um Rocky Balboa latino-americano.

Nesse sentido, o longa funciona dessa forma até o ponto central de sua narrativa, algo que pode ser contado no relógio. A ascensão de El Inca dura exatamente uma hora de filme, enquanto o restante será sobre sua queda, uma narrativa escrita sob os preceitos dos manuais de roteiro. Nessa primeira parte vemos justamente esse clichê ser representado, o azarão que vai tomando corpo contra os mais diferentes oponentes, a raiva das ruas canalizadas para o ringue, o garoto pobre lutando em ricas arenas asiáticas, até ser finalmente o desafiante de um campeão mundial.

Se o longa demonstra nesse momento toda uma precariedade técnica, um filme que tenta reproduzir os caminhos visuais do cinema esportivo americano, sem dar conta de um trabalho de câmera passável, ou de uma encenação interessante, El Inca vira apenas um filme repleto de slow motion em lutas pouco críveis. De fato, o mais interessante no longa é ver o cenário latino da luta tomando forma, algo distinto aos palcos americanos, uma sujeira constante, uma luta que acontece debaixo de uma chuva de garrafas, copos plásticos e água jogada pela plateia. É nesse cenário que a consagração de Valero acontece, a glória na América Latina é muito diferente daquela vista nas lutas televisionadas ao vivo de Las Vegas.

De fato, essa consagração que ocorre no meio do filme é ponto alto do longa, onde surge a melhor construção técnica da narrativa numa longa sequência empolgante de luta, algo que realmente transparece esse fanatismo em relação à figura esportiva de Valero. Todavia, já em sua sinopse oficial, El Inca é definido como uma trágica história de amor. Aliás, amor, nesses casos, deve ser uma palavra usada com cautela. O que ocorre em El Inca é o fato dos impulsos (sejam eles bons ou ruins) estarem associados a uma figura feminina, sua companheira Joselin, carinhosamente chamada de Negra. Valero nutre a mesma paixão e obsessão que possui com o boxe pela sua namorada e depois esposa, algo tão violento quanto o esporte que pratica.

A questão é que claramente, El Inca passa a ser um filme sobre este relacionamento mais que conturbado, que passa de todos os limites do abuso. Isso se concentra naquela hora restante da narrativa, mas está diluído em todo o filme. A questão é que essa história sobre um relacionamento abusivo (que nada tem a ver com amor) é sempre tratada do ponto de vista do agressor, que por sua vez é um homem glorioso como demonstra o filme. Nessa relação há uma ambiguidade nas coisas, uma condescendência com o estado das ações praticadas por Valero. No filme mostra o abuso de droga, as constantes traições de Valero, sua paranoia constante, alucinações que colocam sua esposa como causa de sua violência. Ao tentar entrar na cabeça desse personagem, justamente nesse momento, a obra afasta-se da dor de quem sofre realmente, e apazígua e quase absolve Valero de seus atos. Algo que fica muito marcado na tentativa de suicídio de Joselin após um surto do pugilista e um momento em que ela é espancada, duas situações retratadas através das elipses, de forma que o espectador não sinta o real peso daquelas circunstâncias.

Algo que fica ainda mais turvo se for pensada toda a representação dessa personagem feminina. “Negra” quando garota esperou Valero sair da prisão, viu que o garoto a espionava no banheiro e mesmo assim ficou com ele, como se tivesse sido avisada do comportamento de Edwin. Depois, já casada com ele, podia resolver todas suas brigas com o marido através do sexo e da simples compras de sapatos, como se Joselin respondesse somente a esses dois impulsos superficiais. Negra reproduz claramente o estereótipo da mulher de malandro, que estaria naquela situação justamente por gostar de sua violência, ela praticamente não reage quando Edwin espanca um antigo amigo por ciúmes, e quando descobre a traição de seu marido pune a amante e não seu homem. Uma representação extremamente complexa e problemática sobre uma personagem real que sofreu as mais cruéis consequências de um abuso.

El Inca, até como forma de se defender de sua complexa representação dos personagens, apela para o melodrama, se nos esportes tenta copiar os procedimentos do cinema americano revelando sua precariedade técnica, no seu lado “amoroso”, El Inca remete a uma novela, exagerando na intensidade emocional de seu par romântico, e nas juras de amor que os dois fazem em sua fala. Algo que surge numa encenação extremamente carregada de seus protagonistas, Alexander Leterni e Scarlett Jaimes. El Inca demonstra seu despreparo nessa construção de uma tradicional narrativa de ascensão e queda.

O longa venezuelano é problemático em diversos sentidos, tanto no seu preparo técnico e narrativo, quanto como tratar uma tragédia que envolve uma figura pública. A sensação é que aquele fato trágico, resultado de um abuso sofrido pela esposa do lutador, foi um empecilho para a promissora carreira de Valero. No filme fica claro que a figura final de Edwin é a de um campeão erguendo seu cinturão, um filme turvo em relação às representações de sua personagem real.

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