Críticas

Mostra SP |Crítica - Marlina: The Murder in Four Acts

Alguns países ficam bastante caracterizados por certo tipo de cinema, algo que faz com que o público já espere um determinado padrão de algumas cinematografias específicas. Isso é bastante comum em obras, por exemplo, da região mais oriental do Globo, onde se espera uma tradução da cultura e do estilo de vida em imagens cinematográficas, algo conhecido como um estilo chamado World Cinema – uma espécie de filme autoral para exportação que possuiria tais características. No cinema do oriente, principalmente obras de cinematografias menos desenvolvidas do que as de Japão, Coréia do Sul e China, esses filmes são conhecidos pelos seus longos planos sequências, planos abertos revelando a paisagem, algo que refletiria no filme um viver daquele país.

Marlina: The Murder in Four Acts começa justamente assim, um grande plano geral que mostra o entrono da residência da personagem título, num momento cadenciado, com um instrumento de corda soando um ritmo especificamente regional. A protagonista vai buscar água no seu poço, como se fosse um pequeno recorte do cotidiano daquela mulher. Quando ela volta para sua casa um homem entra também no lugar, num diálogo comum, começa a se notar certo estranhamento, e dali mais quatro homens surgem para levar tudo que Marlina possui. Ela é obrigada a cozinhar e recepcionar aqueles homens com medo que algo pior possa acontecer. Ameaçada constantemente, a mulher envenena os quatro, enquanto outros dois fogem e o líder do bando sem consciência do que já ocorreu tenta assediar a moça, que em legítima defesa fere o homem mortalmente. O longa segue com Marlina tentando ir a um lugar seguro, enquanto o restante do grupo de malfeitores busca pela mulher.

Dividido em quatro capítulos, Marlina: The Murder in Four Acts mistura uma série de experiências cinematográficas para contar a jornada dessa protagonista nos confins da Indonésia. O típico som de cordas de uma música oriental mescla-se com o som de uma guitarra em reverberação, os grandes planos abertos característicos do world cinema, agora lembram muito mais a típica gramática do faroeste americano. A violência gráfica e exagerada invade a mise-en-scène contemplativa, numa mistura interessante entre os mais diversos estilos, fazendo, acima de tudo, um comentário interessante sobre aquela jornada.

Marlina parte então para algum centro urbano, a fim de registrar sua ocorrência, carregando consigo os restos mortais do líder da gangue. No seu percurso ela encontra uma amiga grávida, passa um tempo considerável num ônibus rumo à cidade com outros moradores locais e encontra também uma garotinha quando finalmente chega à cidade. Em seus momentos solitários, Marlina é visitada pelo fantasma de seu agressor, um fantasma decapitado que faz com que ela relembre de tudo o que foi ocorrido.

Nessa mistura que envolve um alto grau de realismo fantástico, algo bastante em pauta em cinematografias não hegemônicas – o Brasil mesmo possui excelentes obras que se inserem nessa estratégia, o filme dirigido por Mouly Surya é extremamente potente por conseguir fazer uma ponte entre a fantasia, o diálogo entre o cinema de gênero e o world cinema, resultando numa interessante constatação social.

Com extremo vigor formal, fazendo sempre composições interessantes, e com uma precisão estética impressionante, a diretora constrói momentos que ressaltam a dor e a jornada da personagem principal. Por exemplo, quando Marlina cozinha a seus agressores e uma luz vermelha invade sua cozinha, com a mesma violência que aqueles homens entram em sua casa. Ou quando a mulher finalmente chega à delegacia, e há um incessante jogo de ping-pong, visto no segundo plano através de uma porta aberta, enquanto Marlina relata o crime, demonstrando a insignificância de prestar queixa naquele momento. Ou, por final, os já citados grandes planos gerais, onde a personagem é vista sozinha em grandes paisagens arenosas, uma solidão só quebrada justamente pelo fantasma do agressor, algo que aprofunda Marlina numa solidão, deixando-a sem saída e frente à violência que acabara de sofrer.

Nesse sentido a fantasia e a inserção do gênero funcionam na chave de explorar essa questão social, uma resposta frente à vulnerabilidade feminina naquela sociedade, algo que se dá justamente no encontro de Marlina com outras mulheres. Como se cada mulher ajudasse a sustentar a força que a protagonista teve para se livrar daqueles que invadiam sua casa e pretendiam invadir o seu corpo. Em todos os capítulos o que se encontra são situações em que Marlina possui uma saída justamente nesses encontros femininos, mas nada tão expositivo, ou apelativo, é como se elas inspirassem alguma saída. A mais interessante é realmente a troca entre Marlina e a garota encontrada na cidade, um diálogo entre uma mulher brutalizada e outra ainda inocente, numa troca de forças, devolvendo alguma esperança para aquela mulher.

É importante falar que Marlina nunca é uma personagem abatida, mas sempre certa das suas ações, convictas de sua condição heroica dentro daquela narrativa, realmente como um herói do faroeste, um guerreiro do cinema de samurai do oriente. Nesse quesito, o filme propõem saídas catárticas (por isso, o exagero e a fantasia) para uma questão social, uma revanche feminina possível através da narrativa e do cinema. Se o wolrd cinema é o esperado pelo público do restante do mundo, Marlina: The Murder in Four Acts subverte qualquer expectativa para explorar a sua maneira uma questão fundamental em seu país de origem.

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