Críticas

Crítica | Aqualoucos

A primeira vista Aqualoucos pode ser um simples documentário sobre um período curioso que afetava as mais diversas piscinas dos clubes paulistanos. Um filme sobre um assunto escondidos no inexistente livro de memórias de São Paulo, mas acima de tudo um retrato daquela atração que hoje não ocupa mais tanto espaço no circuito paulistano. Fato é que Aqualoucos partindo de um pressuposto simples consegue fazer um belo exemplo da relação da cidade de São Paulo com suas memórias, a esquizofrenia de uma cidade que apaga sua própria história a cada dia.

O longa conta a história de um grupo de artistas que propunham um show de palhaço realizado nos trampolins de piscinas paulistanas, animando as plateias cheia de crianças, num show que unia esporte e humor. O número era formado por praticantes de saltos ornamentais, alguns amadores outros profissionais, sobretudo realizado por jovens, o shows ocuparam as piscinas dos anos 1950 aos anos 1980, conquistando público e quebrando recordes com seus saltos totalmente inesperados. O longa busca então investigar essas figuras, realizar um verdadeiro retrato daquele espetáculo, rememorar algo que parece esquecido por um processo de modernização do entretenimento, que não enxerga mais espaço nos clubes bairristas da cidade.

Aqualoucos então se torna claramente um filme de memória, de uma dialética entre uma herança emocional e um apagamento forçado pelo constante processo de modernização da cidade. Os entrevistados pelo filme falam de um tempo completamente desconectado, uma história que começou nas margens do rio Tietê, que corria pelos clubes ao longo de sua margem, onde hoje encontra-se apenas carros disputando o quão mais rápido podem correr. Mais do que um discurso saudosista, o documentário consegue ser um ponto de reafirmação da memória de um imaginário paulistano, um filme que coloca práticas comuns à luz, fazendo com que esse processo irreversível da cidade seja questionado.

O que sobra dos Aqualoucos são realmente suas histórias, suas próprias memórias, confinadas dentro de um ambiente privado, longe do público que eles animavam. Dessa forma, entre as entrevistas e as visitas do grupo aos antigos locais de sua glória, o que se encontra não são mais a piscinas ou clubes, mas uma coisa outra, algo modificado pela cidade, um apagamento total. A sensação é justamente o peso de uma memória afetiva que não pode mais ser vista materializada, que se perde em tantas obras e mudanças. Assim não é difícil que hoje não se saibam quem foram os Aqualoucos, lembranças não existem sem monumentos, mesmo que aqueles espaços sejam monumentos apenas para seus participantes. A cidade apaga um traço afetivo e a pequena glória daqueles homens.

É curioso como um dos integrantes do grupo, Caçarola, repete algumas vezes como certas pessoas dizem ter feito partes dos Aqualoucos quando na verdade ou eram totalmente desconhecidos, ou fizeram apenas uma figuração, como o próprio Caçarola diz. Aqui é colocado em pauta esse receio de uma memória com risco de ser apropriada, sem vestígios para ser reclamada pelos verdadeiros realizadores. Essa é uma questão muito forte no filme, dirigido pelo filho de Caçarola, Victor Ribeiro, onde parece haver uma preocupação por reivindicar essa lembrança, por consolidar um imaginário que a cidade do presente faz questão de apagar.

Das fotos desbotadas, dos vídeos já não tão preservados, deve ser ressaltado os feitos, e realmente tentar compreender como aqueles homens não se tornaram nem mesmo parte de uma história contada. O longa toma minutos e mais minutos explorando a figura de Manolo, um Aqualouco consideravelmente famoso, que saltou de um helicóptero em uma piscina. Sem preparação alguma, com pouquíssima proteção e ao lado de pistas de carros movimentadíssimas. E além da ótima construção sensorial que realmente faz com que o espectador fique tenso com os saltos de Manolo, a grande questão é se perguntar como esses homens não se tornaram parte de um imaginário paulistano, algo que deve ser perguntado pelo próprio diretor desde sua infância.

A presença do diretor é fundamental, ainda que em alguns momentos essa subjetividade do tema é colocada apenas quando deseja uma maior adesão emocional por parte do público, como se fosse mais um recurso narrativo, ou talvez uma necessidade de deixar o tema um pouco mais amplo, mais impessoal. De fato sente-se o carinho do realizador por aquilo que retrata, uma revisão ao passado glorioso de seu pai e seus amigos. O filme por muitas vezes se deixa levar por essa paixão pelo que retrata e Aqualoucos torna-se uma obra pouco concisa, que às vezes se dispersa e não consegue podar as mais diversas histórias daquele grupo. Divagações sobre o circo e o telecatch (a luta livre encenada) são interessantes e conversam com esse imaginário da cidade, mas parecem ocupar um espaço que não pertencia a elas.

Mesmo assim, Aqualoucos é um filme que consegue fazer dessa retomada a um passado nostálgico algo leve, um prazer em ser rememorado, um retrato que se solidifica em imagens, enquanto a cidade faz questão de demolir. Aqualoucos é um filme sobre o grupo de palhaços compostos por nomes do salto ornamental, mas também sai desse cenários específico para construir uma imagem de uma memória apagada pela própria cidade, imagens de um passado paulistano que parece mais distante do que realmente é. Aqualoucos é só uma parte da imaginação que se perde num frenético, descompassado e inconsequente processo de eterna modernização.

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