Críticas

Crítica | Thelma

A experiência de sair da casa dos pais, entrar numa faculdade longe de sua zona de conforto, com um novo e até hostil círculo social e estar aberto a novas experiências sexuais e sentimentais são momentos bastante comuns e marcantes numa determinada fase da vida. É justamente essa fase que a personagem título se insere, uma garota vinda do interior e educada rigidamente sob os preceitos religiosos, que agora deve se adequar a nova vida universitária. Todavia estranhas convulsões começam a atrapalhar os percursos da jovem, condições físicas que começam a piorar com uma paixão repentina de Thelma por Anja, revelando grandes segredos sobre sua doença.

Se Thelma pode falar de questões bastante comuns, é interessante notar que esse ponto de vista é fundamental para entender o filme como um todo, esse deslocamento de uma educação e experiência de vida baseados em códigos e regras tão rígidas para um ambiente marcado pela liberdade em diversos níveis, relações trabalhadas de forma intensa, como se fossem pontos de fricção. Talvez o choque seja tão grande que a melhor maneira de abordar essa relação conflitante seja através do fantástico e até mesmo do sobrenatural, utilizando esse fator para explicar experiências do dia a dia comum.

O mais interessante é como esses elementos fantasiosos são abordados de forma inteiramente realista, sendo levados até as últimas consequências na construção dessa ficção. Não é como se entrasse uma matéria visual, ou elementos lúdicos/oníricos para afirmarem esse lado do longa, pelo contrário esse elemento mágico vem como uma doença, algo que tem séries consequências visíveis no mundo real daquela narrativa. O diálogo entre o real e o fantasioso é tão fluído que não se sente que há duas dimensões no longa, mas tanto um quanto o outro são fundamentais para abordar as questões presentes no filme.

Dessa maneira, Thelma vai tecendo essas relações entre um horror que surge de uma sensação real extremamente conectada a uma questão do fantástico. Thelma é um filme do extraordinário, comentando sobre algo comum, que é rompido por questões que fogem a regra, podendo ser tanto uma simples convulsão como algo relacionado a uma espécie de superpoder, que mal interpretado pode muito bem ser entendido como uma maldição. As convulsões da garota sempre vem acompanhadas de imagens que repentinamente materializam-se, nada dentro do absurdo, mas simples desejos adolescentes, como almejar que a garota que você gosta surja no meio da noite na frente de seu dormitório, mesmo que ela nem saiba seu endereço.

O filme então tem essa sensibilidade e intensidade para construir sua narrativa de autodescoberta, algo que por si só pode estar nessa esfera do extraordinário. Tanto a relação entre Thelma e Anja, seu distanciamento familiar e a investigação de sua condição fantástica são abordadas como uma jornada de descoberta da protagonista, algo que faz com que Thelma vá se consolidando como indivíduo, longe dos preceitos familiares, aceitando suas diversas condições. Nesse sentido todas essas dimensões de descoberta chegam a um mesmo patamar, onde todas elas estão conectadas, como se tudo aquilo fizesse parte da figura única da protagonista.

Essa perspicácia narrativa existente no roteiro de Eskil Vogt e na condução do diretor e co-roteirista Joachim Trier também se conecta extremamente bem num conceito muito claro dos filmes de Trier, apenas em seu quarto longa, mas já demonstrando uma interessante regularidade. Como em Oslo, 31 de Agosto e até mesmo em Mais Forte Que Bombas, o cineasta emprega uma câmera que cola em seus protagonista, a fim de criar uma relação extremamente íntima entre personagem e câmera, logo entre personagem e espectador. É sempre Thelma que está em cena, o espectador desvenda seu mundo com ela, suspenso das certezas daqueles acontecimentos, entrando nos mistérios e sensações que ela ainda desconhece.

Com isso, há uma relação quase simbiótica entre a direção do longa e o trabalho da jovem atriz Eili Harboe, em que o corpo da protagonista dita o ritmo do filme, fazendo com que a câmera e a mise-en-scene gire em torno dela, isso sem que Thelma seja marcado por aqueles exagerados movimentos de câmera na mão para ressaltar essa relação entre o aparato técnico e a atriz. Aqui Trier abstém de uma assinatura para deixar que a intensidade de sua protagonista transpareça na tela, uma figura feminina que vem de uma frágil inocência até chegar a uma violenta e sagaz afirmação pessoal. Thelma é menos Trier ou qualquer trabalho técnico e muito mais a evidência dessa potência feminina em cena.

É curioso que o filme seja o indicado ao Oscar pela Noruega bem no trabalho com menos aspecto art house de Joachim Trier, algo como uma fórmula e um aspecto visual comum nos filmes de arte de grandes centros cinematográficos europeus. Em Thelma, muitas vezes o diretor dialoga com uma experiência do filme de gênero – algo erroneamente entendido como uma expressão menor dentro da experiência cinematográfica. O filme utiliza um fluxo de imagens que se vê na tela do cinema, quando a jovem pesquisa sobre sua doença, provocando até algo próximo do choque pelo choque em imagens bastante surpreendentes. Ou até mesmo uma visita da protagonista a um asilo, que relembra um filme de lugares mal assombrados. Thelma consegue, assim, ser um filme bastante surpreendente, realizando diálogos cinematográficos entre diferentes experiências, do filme de arte ao horror.

Independente de sua indicação ou não ao Oscar, o mais interessante em Thelma, e o longa é um título bastante instigante que entra em circuito, é como o filme faz todos esses aspectos de ordem técnica, narrativa e estética contribuir para a construção de seu discurso. É a excelência dessas questões que fazem o extraordinário falar sobre o comum e explica-lo de forma bastante imaginativa. Thelma ainda conta com um final contundente, onde essa busca sobre uma descoberta e uma reafirmação pessoal surgem de forma violenta através do fantástico, sintetizando e concluindo as boas ideias de Thelma.

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