Críticas

Mostra SP | Crítica: Eu, Pecador

Algumas figuras são controversas, dizem, de forma embasada, algo que o senso comum rechaça, um olhar consciente e diferenciado sobre as questões do mundo. Alguns outros são apenas polêmicos, que buscam através das suas ações chamarem atenção para si mesmo. Se de longe essas pessoas podem assemelhar-se, talvez a grande diferença é que um está ali provocando para gerar reflexões, propor um viés diferente a algum problema de ordem geral, e o segundo tem em suas palavras o fim em si mesmo, onde toda a polêmica acaba resultando numa autopromoção. Algo que está em voga atualmente, gerando os mais estranhos debates. Talvez o protagonista do documentário Eu, Pecador tenha sido um dos grandes dessa tática, Agnaldo Timóteo pode ter sidos um dos mestres da autopromoção.

Polêmico, como a obra tenta deixar claro, a figura mantém sua fama provinda dos palcos e programas de televisão, onde conquistou o público interpretando famosas canções de amor, através de suas desafiadoras declarações. A impressão que fica é que o amor, em Timóteo, passou a habitar um plano menor, onde as palavras ácidas tiveram que prevalecer, a fim de sua imagem permanecer em voga. O personagem dispara contra todos. Minutos e mais minutos falando sobre como João Gilberto (um dos fundadores da Bossa Nova) era uma enganação, “um cara que não cantava, que não tocava, que não interagia” como diz Timóteo. Outros minutos são dedicados ao cantor tentando desmitificar a figura de Chico Buarque, também criticando sua performance vocal, questionando sobre seu estilo de vida e suas opções políticas.

Se num primeiro momento este é um ponto que gera até algumas risadas, ao perceber que Timóteo realmente sempre buscou os holofotes por meio de suas falas sem coerência alguma. A seguir o que vêm é preocupação, gerada pelo fato de perceber que Eu, Pecador será um documentário de quase uma hora e meia apenas de seu retratado repetindo essa verborragia incoerente pouco embasada, reproduzida em programas de auditório e na entrevista concedida para o documentário.

Se Timóteo hoje vive na política, a câmera e a sala de edição dirigidas por Nelson Hoineff estão lá, acompanhando a panfletagem do candidato durante as últimas eleições, onde o protagonista concorreu para vereador pelo estado do Rio de Janeiro. Se nesse segundo momento a sensação é que o documentário dará uma guinada rumo a essa outra esfera da sua figura retratada, percebe-se que a lógica continuará a mesma, uma série de colagens, alternando entre imagens de arquivos e a entrevista recente, onde mais uma vez Timóteo solta frases marcantes, surpreendentes e como sempre polêmicas, mas nunca embasadas, argumentativas ou qualquer coisa do gênero.

São manchetes sem notícias jogadas por todo o filme, “Collor foi o maior presidente do país”, “Lula salvou a plebe”, “Maluf é o político com a maior capacidade administrativa do país”, “eu uso o dinheiro do jogo do bicho em minhas campanhas” e assim por diante. Algo que não chega a ser controverso, pois o discurso não se mantém, as palavras ditas de forma quase arbitrárias não são defendidas nem pelo filme, muito menos por quem as disse, perdendo sua força logo após serem pronunciadas. Entre os gritos de Timóteo na câmara, na TV aberta ou na frente do diretor do longa-metragem o que sobra é um circo armado em volta dessa figura que sabe chamar a atenção para si, que sabe muito bem como envolver com esse discurso polêmico aqueles que estão loucos por uma notícia bombástica, aqueles que devem manter seu espectador ligado após o intervalo comercial, aqueles que estão interessados em fortes palavras vazias.

Esse pode até ser Agnaldo Timóteo e sua estratégia para manter-se midiático, mas o que mais incomoda é a relação entre este complicado personagem e a forma como ele é representado. Em momento algum parece que o longa-metragem está preocupado em ir além dos berros de seu protagonista, tentar entender porque age assim, indagá-lo pelas tantas incoerências discursivas, ou fazer um retrato humano de um homem afeito as polêmicas, sempre vestindo um terno midiático. O resultado é que Eu, Pecador nunca consegue perfurar esse casco que reveste Timóteo, e a pior sensação é que o longa parece não ter tanta vontade de encontrar outra visão de seu protagonista, Eu, Pecador aparenta desejar as mesmas polêmicas vendidas aos mais duvidosos programas de televisão.

Assim, Eu, Pecador compra completamente os discursos de Agnaldo Timóteo, proporcionando que o documentário seja mais uma forma de proferir e reunir suas maiores polêmicas, sem investigar nenhuma delas. Minutos e mais minutos de programas de televisão e outras entrevistas são replicados, o espectador assiste a trechos inteiros de Super Pop, Programa do Ratinho, Bastidores do Carnaval, sem que a montagem desses arquivos diferentes traga algo de novo para a narrativa. Pelo contrário, aquilo está ali para reproduzir as consumíveis polêmicas.

Nem mesmo quando o filme começa a discutir algo extremamente íntimo a Agnaldo, sua conturbada relação com a homossexualidade, reprimida, rechaçada ao mesmo tempo que presente, o longa aborda este fato como se estivesse mais uma vez em busca de uma frase de efeito, mais uma manchete que seria colocada na narrativa, algo que muito provavelmente chamaria ainda mais atenção para o filme. Fato é que esse ponto, importante e humano, que talvez trouxesse alguma faceta a mais de seu retratado, é tratado com pouco cuidado, no meio dos recortes de televisão e dos mais variados berros midiáticos, a questão humana é levada mais uma vez ao lado da autopromoção, aquela que o espectador já conhece.

Eu, Pecador faz com que todos esses recortes sejam trazidos para tela de forma embaralhada, num documentário com sérios problemas de edição, algo extremamente necessário numa obra realizada com materiais de arquivos. A narrativa proporcionada pela montagem é confusa, fatos e declarações que vão e voltam, fazendo com que o espectador mal entenda qual é o ponto debatido em alguns momentos do longa. Algo que faz necessário a utilização de inter títulos para separar alguns assuntos importantes, sem essas chamadas esses temas seriam mais uma fala dita em meio a tantas polêmicas retratadas durante Eu, Pecador.

É verdade que quando Timóteo começa a cantar o longa tem seus méritos, principalmente pelas canções comentarem passagens de sua vida pessoal, um jogo interessante entre o ambiente que consagrou aquela figura (a música) e aquilo que o mantém na mídia (suas ácidas palavras). Talvez esse problema existente no longa funcione como uma analogia da própria trajetória de Timóteo, extremamente competente em suas canções, mas um tanto quanto frágil em seu discurso.

Realmente o que fica desse retrato de Timóteo em Eu, Pecador é o fato de seus realizadores não conseguirem ultrapassar uma faceta já vista e tão reproduzida. É curioso como os ruídos da imagem televisiva são ressaltados no longa, como se aquele fosse um ambiente sujo, que se utilizasse das mais polêmicas vazias do cantor e político, mas ainda que o filme tenha uma estética da imagem límpida, Timóteo faz de Eu, Pecador mais um palanque para palavras de absurdos e o longa, como um velho programa de auditório, aproveita-se disso.

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