Críticas

Crítica | Sem Fôlego

Sem Fôlego é um filme atípico, aparentando até mesmo ser um corpo estranho nessa temporada badalada de filmes com alguma possibilidade de premiação. Ainda com alguns nomes famosos no elenco, o barulho em Cannes e tudo mais, o longa de Todd Haynes (Carol)ainda parece muito distante daquilo que se busca nesses filmes típicos de premiações ou obras que contém elementos que acabam sendo fundamentais nesse período de constante aclamação, algo que torna Sem Fôlego no mínimo atraente.

Distante de um estilo suntuoso, que evita uma beleza padrão, avesso aos grandes acontecimentos históricos ou as conhecidas obras baseadas em fatos reais e longe das temáticas atuais, Sem Fôlego faz um filme muito sincero, cercando sua narrativa de uma força muito própria, sem negociações ou sem um pensamento sobre o que poderia atrair mais olhares a obra. O longa de Haynes vai ainda mais longe do que apenas se distanciar de tendências, o cineasta busca uma forma muito particular para desenvolver aquela trama, onde tudo surge da força das imagens que cria, principalmente do fluxo semântico que elas provocam, ou seja, como as sequências visuais colocadas lado a lado produzem significados e sentidos diversos, unindo cenas de tempos diferentes num mesmo tom, num mesmo sentido e num mesmo rumo.

Nesse caso distinto dentro de um cinema bastante engessado (ainda que grandes títulos surjam nessas premiações), Sem Fôlego é uma obra arrojada, que deriva de processos bastante modernos e contemporâneos, mas para isso faz questão de buscar seus elementos chaves num cinema que já não se faz mais presente. O longa de Haynes busca sua inspiração no cinema do início do século passado, baseado na máxima do inventor do cinema americano e sua narrativa clássica, D. W. Griffith. Sem Fôlego é um longa totalmente baseado num paralelismo dramático, ou seja, quando duas linhas narrativas são contadas ao mesmo tempo, e a montagem faz a vez do “enquanto isso” da literatura, as duas linhas vão progredindo e o espectador fica intrigado nessas duas pontas de um mesmo filme, conectando duas histórias através de suas imagens.

Haynes leva isso ao máximo em Sem Fôlego, o que se vê em tela são duas crianças perdidas numa cidade grande, sem a audição, buscando por ali uma peça que falta para que encontrem um rumo ou um lar. Uma delas lá no início do século passado, próxima ao tempo de Griffith, outra nos anos 1970 e uma revolução urbana e cultural que alterou todas as relações sociais. Ambas narrativas estão ligadas pelos sentimentos de seus personagens, por suas jornadas e por um local específico, um museu.

O longa conta a história de um garoto, Ben, que acaba por passar por duas perdas, a de um familiar e sua audição após ser atingido por um raio. Com esses dois fatores afetando fortemente a vida do garoto, ele decide seguir os poucos rastros que tem do pai desconhecido. Essa trajetória é intercalada com a narrativa de Rose, cinquenta anos antes de Ben, acompanhando também uma menininha surda e muda que vai de encontro com o restante de sua família, a mãe atriz e o irmão que há muito não se tem notícia. Sem Fôlego é um filme que trabalha essas duas fortes narrativas com o objetivo de ser puramente visual, em trabalhar como essas imagens em conjunto podem transmitir uma série de relações.

O longa já introduz o espectador nesse procedimento, começando com um fluxo que deixa a plateia em suspensão acerca dos eventos ocorridos ali. Ben é perseguido por lobos, acorda na casa de seu primo, se vê uma discussão entre o garoto e sua mãe, depois sua prima tocando os discos que ele ouvia na cena anterior. Tudo isso faz com que pouco a pouco seja descoberto o que é Ben e quais serão seus desafios. As narrativas propriamente ditas começam, o raio faz com que o garoto perca sua audição, deixando a busca por seu pai mais difícil, ele foge e parte para desvendar, a fim de encontrar essa imagem que falta, essa peça que revela realmente quem ele é, e para onde pode ir.

O que se vê então são como essas duas narrativas se completam, como cada imagem e ação de uma daquelas crianças complementa e continua a da outra, ainda que elas estejam separadas por essa grande lacuna temporal. O filme dá saltos dentro das próprias linhas narrativas de cada um, interrompendo informações, forçando que justamente esse diálogo entre aqueles dois produzam um sentido outro. Essa operação radical e moderna provinda de uma operação fundamental do cinema não está aqui como um mero aparato, é justamente isso que faz surgir um elemento mágico dentro da narrativa.

Sem Fôlego em si não é um filme fantasioso com elementos que abordem a imaginação das crianças abertamente, trazendo o que não é real para a trama. Todavia, o filme mantém esse encantamento por essa aproximação de aventuras tão semelhantes, por esse esforço para encontrar essa imagem que falta, como se tanto Rose como Ben estivessem carregando esse desejo da curiosidade, de desbravar um museu, ou uma cidade inteira, ainda que para aqueles dois essa jornada tenha muito mais significado.

Essa dupla jornada infantil marcada por essa curiosidade honesta e ingênua faz com Sem Fôlego seja marcado pela inocência, sem que isso se traduza em leveza ou diversão, pelo contrário. Sem Fôlego é um filme com tom sóbrio que também recusa o sentimento de nostalgia sem fim, que produções atuais com aventuras juvenis gostam tanto. Tudo ali indica o peso daquela jornada, que pode ter sua sinceridade infantil, mas nunca deixará de ser significativa, o drama nunca cede lugar a uma piada ou uma fantasia vazia, mas organiza as ações daqueles personagens e os procedimentos escolhidos pelo cineasta.

O filme é baseado no livro de Brian Selznick, que também roteiriza o longa, um escritor que faz longos livros onde as imagens tomam conta das páginas, algo que reforça a busca do longa por essa expressão visual. Assim como demonstra que Sem Fôlego também marcava uma diferenciação dentro de um mercado literário. O longa segue nesse radicalismo de suas propostas a fim de entender como nessa sua distinção em relação àquilo que se faz, pode realmente abordar de forma distinta aquilo que conta. No caso, essa jornada infantil, levada a sério, que remete a uma curiosidade inocente, a uma sinceridade que faz com que se entende porque é tão importante aquela procura de Ben e Rose por essa imagem que falta.

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