Críticas

Crítica | Pantera Negra

Há uma matriz temática muito clara nos filmes da Marvel desde o início de sua segunda fase, não coincidentemente quando a Disney tomou conta de vez dos estúdios. A questão familiar é um ponto central em todos os filmes deste universo desde então, os próprios Vingadores tornam-se o exemplo de uma grande família e seus desentendimentos internos. Pantera Negra não é diferente, e se o primeiro Guardiões da Galáxia era ousado por alterar o modo de um filme de herói se relacionar com o público, adicionando a comédia escrachada ao gênero, o longa de Ryan Coogler tem a audácia de rever os parâmetros desse fundamento temático.

O cineasta conhecido pelo sucesso Creed com roteirista Joe Robert Cole fazem de Pantera Negra uma tragédia, onde o esfacelamento familiar é levado a um patamar de importância muito maior, movendo verdadeiramente todos os impulsos de heróis e vilões. Isso se relaciona com o ícone desse herói, que só agora ganha um filme solo, Pantera Negra não é apenas um super defensor, mas também rei de uma nação africana, guerreiro escolhido pelos deuses e o único herói negro desse universo. Fatores que fazem a noção de família tomar outra proporção, como se seus irmãos, pais e filhos se estendessem não apenas com aqueles de laço sanguíneo.

Pantera Negra é um filme sobre a cisão, sobre como é necessário perceber que uma separação está a caminho e que isso pode causar sérias consequências. Pior ainda, no longa essa dissolução familiar está o tempo todo escondida, sendo revelada aos poucos, traições que se mostram mais complexas, revelando outras traições. Quando isso está envolvendo tribos, tronos e monarquias esse patamar ganha dimensões shakesperianas, onde irmãos corroem-se por poder, juram lealdade a questões fugazes sem pensar naquele vínculo que ali existe.

O longa parte do momento em que T’Challa (Chadwick Boseman) deve assumir o posto de rei de sua nação, iniciando sua narrativa logo após os eventos vistos em Capitão América: Guerra Civil. Aqui já fica claro que o longa não é uma simples narrativa de origem, o desafio desse herói não é lidar com seus poderes, ou com seus primeiros vilões, ele desde criança foi preparado para isso, o protagonista deve entender suas novas responsabilidades, entender o que ele deve fazer no comando de uma nova nação, na difícil missão de manter unidas as nove tribos que fazem parte de Wakanda. Mais do que isso, o herói deve pouco a pouco perceber quais foram os erros de seus antepassados e manter unidos irmãos tão opostos.

É bem verdade que a narrativa proposta pelo filme muitas vezes é repleta de voltas, de uma falta de concisão que freia o ritmo de Pantera Negra, mas é interessante observar como pouco a pouco, essa missão de T’Challa vai demonstrando-se mais complicada, onde seus emaranhados familiares demonstram complicações que não apareciam num primeiro olhar. É verdade também que parece um desperdício o longa ficar tanto tempo na persona interpretada por Andy Serkis, Klaue está longe de ser o vilão do longa e é mais uma peça narrativa para fazer com que o verdadeiro conflito do longa aconteça. O filme ganha uma energia extrema quando T’Challa encontra-se com Killmonger (Michael B. Jordan), quando finalmente esse emaranhado familiar é revelado, e essa cisão é colocada em questão.

Os prólogos que pareciam meras explicações começam a ser amarrados e o longa toma uma importância absurda. Realmente aqui está um vilão forte, com um herói tão forte quanto, mas isso ocorre, pois enxerga-se que as fronteiras entre o antagonismo e o protagonismo estão extremamente borradas. Os motivos de Killmonger são mais do que compreensivos, T’Challa está no posto de perceber os erros de sua linhagem, há ali um material humano muito forte, um filme que não trata suas personagens como meras figuras de ação prontas para se estapearem, mas busca entender suas complexidades. Michael B. Jordan é um típico gangster de filme policial dos anos 2000, e ele almeja vingança e violência, mas praticamente chora ao dizer que teve que matar irmãos negros para chegar naquele encontro com o Pantera Negra, seus objetivos por mais tortos que sejam também são legítimos. Chadwick Boseman é rei e super-herói, mas por um momento percebe que seu oponente tem suas razões, questionando a dinastia que agora ele serve, revendo seu próximo passo e seu próximo golpe. Chega a ser surpreendente quão humano são esses personagens dentro do universo Marvel.

Essa relação fica ainda mais interessante ao notar-se o sútil comentário político que o filme propõe. De um lado está um radicalismo, um homem que deseja chegar aos poderes e armar seus irmãos oprimidos e agir como opressor, pois o mundo fez sofrer e ninguém nega isso. Do outro, há praticamente um pacifista, que prega a defesa dos semelhantes, no máximo uma reação, mas de forma alguma um ataque. Situações opostas numa mesma posição, aqui claramente a luta contra o racismo e uma colocação negra, debate que vem desde Malcom X e Martin Luther King, algo complicado de se colocar num blockbuster, podendo cair num simples maniqueísmo da situação. A resposta vem nessa conciliação de olhares, de perceber o que há de sincero no discurso dos outros, ainda que um apresente-se como vilão, há a necessidade de compreender os motivos pelo quais se prega a violência como resposta, entender o processo como um todo. Pantera Negra faz isso através do filme de super-herói.

Mais potente ainda é como isso chega à tela sem uma pretensão, como tudo isso soa natural e espontâneo. Isso ocorre justamente porque Ryan Cogler consegue criar um universo extremamente coerente e muito crível, distanciando-se até mesmo das referências ao universo Marvel e seus filmes seguintes. Pantera Negra é dono de um universo único, e torna-se importante por conseguir fazer sua fantasia relacionar-se com a realidade. Se Thor sempre falhou em dialogar o mundo místico com o real, ou Guardiões da Galáxia conseguiu êxito sem tentar fazer uma ponte entre o mundo daqueles heróis e o planeta Terra, Pantera Negra rompe essa distinção e a magia de Wakanda, escondida via feitiço – quase como uma Atlântida moderna, habita o mesmo mundo de bairros negros da periferia americana, países em guerra entre outras coisas.

Esse relacionamento entre o real e o fantástico não está só na menção desses problemas de ordem real, mas na construção visual do longa. A cidade daquele reino é um misto de tribo africana, com metrópole futurista e um aspecto urbano periférico (a utilização constante dos grafites e pichações em cena), fazendo com que o ficcional tenha raízes naquilo que se encontra todos os dias na rua. O longa ainda tem uma atmosfera mágica quando os heróis podem se conectar com seus ancestrais e mais uma vez isso é muito bem realizado sem que seja contestada a verdade daquele mundo.

Ryan Cogler constrói uma caverna de uma exuberância estética única. Um jogo de cores entre o vermelho e o violeta faz com que haja uma preparação por parte do espectador. Essas cores e esse ambiente avisam que ali há uma passagem para um mundo outro. E o mais interessante é que o mundo espiritual, com seu céu estrelado e suas cores totalmente surreais (no mais variado sentido da palavra), pode habitar uma savana africana mística com panteras em cima das árvores, ou um pequeno apartamento na periferia na Califórnia. Mais uma vez é um filme que faz questão de se conectar com a realidade, mesmo quando ele está imerso na fantasia.

Essa questão é algo extremamente importante no filme de Coogler, mesmo nas cenas de ação, começando pelo fato que há apenas uma sequência dessas que acontece fora de Wakanda, evitando uma banalização da violência e de algum tipo de espetacularização. E mesmo assim é realizado um filme tenso e empolgante. As outras cenas de ação acontecem num ritual, onde o rei pode ser desafiado, e ali há todo um respeito à tradição e às regras do combate. Fora isso apenas no clímax há uma dessas gigantescas cenas de ação e ela vem imbuída de certa dor, de uma guerra que não deveria estar ocorrendo dentro de Wakanda. Coogler constrói muito bem essa tensão crescente, essa cisão que vai sendo pontuada, alimentada até se tornar uma Guerra Civil. E por mais que isso seja empolgante, é sempre duro ver dois irmãos em combate.

Ryan Cogler não apela para um jogo de edição frenético, e sua câmera que muitas vezes acompanha as batalhas em planos mais longos faz com que o espectador veja a guerra que acontece, e se é possível vibrar com a vitória dos heróis, também é necessário entender todo aquele processo e as motivações dos vilões, assim como as causas e consequências de um conflito. Se a cisão é o grande motivo do filme, a união entre os iguais é sua grande solução.

Pantera Negra talvez seja o filme mais consciente da Marvel, não só em matéria política, mas como trabalha a temática máxima do universo e como se mantém coerente com suas próprias escolhas ficcionais. O longa provavelmente marca uma mudança não só no universo Marvel, assim como abre a possibilidade de particularidades arrojadas dentro de um filme de herói sem que a empolgação seja deixada de lado. E além de tudo isso Ryan Coogler demonstra com Fruitvalle Station: A Última Parada, Creed e Pantera Negra um estilo muito pessoal, mesmo quando está munido com milhões de dólares e trabalhando dentro de uma grande franquia. Pantera Negra é paradigmático em diversos sentidos.

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