Críticas

Crítica | Projeto Flórida

Mesmo com créditos na função de diretor desde 2000, Sean Baker permaneceu fora do mapa durante longos anos, despontando somente em 2015 com a produção Tangerine, filmada apenas com câmeras de três iPhones do modelo 5s. Por conta dessa obra, o realizador irrompeu no mundo do cinema, pelo caráter enervante de seu trabalho independente, que aposta no naturalismo como cerne desse registro. Baker é o típico caso onde a forma de filmar suscita mais questões do que propriamente a narrativa em si, tendo ela um arco clássico ou não.

Em Projeto Flórida, o diretor assume o papel da ovelha desgarrada, ainda que opte por manter parcialmente a crueza visual de Tangerine. E se em seu longa anterior, ele já dedicava atenção a figuras marginalizadas perante à sociedade, uma vez que abordava em seu enredo a vida de uma travesti sujeita à prostituição, aqui isso ecoa com tanta potência quanto, por discutir a miséria, transportando-nos para os meandros de humildes habitações, localizadas no entorno dos parques da Disney.

Gift shops, lanchonetes e quiosques que oferecem alimentação rápida estão espalhados nas cercanias de Magic Castle, irônico nome dado ao motel barato onde a garotinha Moonee (Brooklynn Kimberly Prince) vive com a sua mãe Halley (Bria Vinaite). Presos em seus cubículos, os indivíduos que ali estão tentam driblar as dificuldades cotidianas para pagar a diária desse projeto gerenciado por Bobby (Willem Dafoe), que mesmo inteirado da condição precária de vida de alguns dos residentes, precisa ter pulso firme para exigir o pagamento em dia, na tentativa de garantir a manutenção, ainda que mínima, das moradias.

Estripulias, realizadas com ajuda de amigos, preenchem os dias de Moonee, enquanto sua mãe tem de lidar com a realidade avassaladora que aos poucos a arruina. A imaturidade da genitora é explícita ao acompanharmos os esquemas escusos em que ela se envolve para ganhar algum dinheiro, como quando se aproveita da presença da filha para que as pessoas se compadeçam de sua situação, comprando produtos como perfumes, dos quais efetua as vendas de forma muito invasiva. A abordagem de Halley deixa claro o seu desespero por se ver enclausurada em tal situação, tanto que outras medidas de sua parte serão tomadas para, ao menos, conseguir preservar a habitação que divide com a filha.

Por mais que não aparente ter como propósito doutrinar o espectador diante da calamitosa situação exposta, não há como não levar em consideração os fatores sociais intrínsecos à narrativa de Projeto Flórida. O roteiro de Baker e Chris Bergoch sintetiza essa questão ao afastar Bobby de seu posto de centralização hierárquica, na tentativa de nos aproximarmos ainda mais do personagem, que compreende os descaminhos de algumas das vidas que o rodeiam; ele parece incumbido de cuidar não só do motel, mas também de sua própria humanização, fortalecendo a paridade existente entre ele e os moradores.

Concebida por Alexis Zabe, a fotografia procura iluminar de forma realista ao trabalhar com texturas que se comunicam com registros documentais, haja vista a cena final que traduz com precisão essa prática. Ademais, a ausência de estabilidade em muitos planos reiteram esse aspecto convulsionado do filme, alavancado pelas atuações naturalistas.

Em especial, Brooklynn Prince nos afeta pela desenvoltura com que conduz a sua personagem, os seus gestos e a forma como externaliza os anseios de Moonee a dotam de um magnetismo que perdura durante toda a obra. A adequada puerilidade contida em sua atuação comove de imediato, como no momento em que sabe que um acúmulo de trocados podem garantir algumas lambidas de um refrescante sorvete. A garota parece já conhecer todos os traquejos do ofício, encontrado raríssimas vezes em atuações infantis, ainda mais num filme que aborda o cotidiano de modo tão inflamado como esse.

Elementos como a solidez de seu elenco, que entrega desempenhos viscerais, a câmera na mão, que faz a história soar ainda mais crível, por criar um acercamento com os indivíduos retratados, e o modo como a miséria é evidenciada, rivalizando com o hegemônico universo encantado da Disney na vizinhança, que possui todos os atrativos para ter muitos olhares voltados para si, tornam esse um filme meticuloso, onde Baker faz questão de exibir as mazelas, recrutando-nos a enxergar tudo por uma ótica sem retoques.

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