Críticas

Crítica | Trama Fantasma

Trama Fantasma é um filme sobre impressões, e como esse desejo de compreensão e entendimento pode pouco a pouco ser talhado milimetricamente, enquanto outra mensagem está ali sendo dita. O oitavo longa de Paul Thomas Anderson está no cerne de um embate entre conteúdo e forma, entre o adereço e a essência, entre a embalagem e matéria em si, num jogo muito perspicaz que leva seu público a um sentimento de suspensão.

Muito disso deve ser colocado na conta justamente de como uma narrativa que parece comum é escrita, mas também filmada por um diretor experiente, um jogo muito mais profundo que um filme tecnicamente bem feito, ou com um roteiro cheio de falsas reviravoltas ou pretensas surpresas. Trama Fantasma conta a história de um estilista, que praticamente por acaso descobre inspiração e desejo numa simples garçonete, fazendo com que ela entre na sua vida particular e seja fonte de seu trabalho, amor, assim como de desilusão e entrega.

De longe Trama Fantasma pode parecer um filme sobre esse relacionamento e as artimanhas que as duas pessoas fazem para sempre se manterem unidas, mesmo que isso pareça obsessão ou até mesmo desprezo. Caracterizar o longa apenas por essas características seria cair numa armadilha extremamente grande, algo que pode ser levado por uma precipitada interpretação pós-filme. É necessário deixar que Trama Fantasma descubra pouco a pouco que suas camadas, onde esse jogo de interpretações, imagens e tramas sejam suavizados, façam sentido em um mundo onde as aparências estão sempre afastando objeto daqueles que o adquiriram. Afirmação que diz respeito a uma relação entre os vestidos do protagonista e suas clientes, a relação amorosa entre os dois personagens e a relação entre filme e espectador.

Esse desdobramentos ficcionais são muito bem planejados por Paul Thomas Anderson, algo que faz com que a obra conecte-se a um jogo para além da projeção, um jogo que auto alimenta o próprio filme. O protagonista, Reynolds Woodcock (Daniel Day-Lewis) faz peças de alta costura, não acredita nem mesmo no que é tendência, nem naquilo que é chic, apenas no que é bonito, no que é legitimamente seu. Assim como realiza suas coleções troca de namorada, ao que tudo indica Alma (Vicky Krieps) será mais uma dessas. A primeira parte do longa mostra como esse relacionamento é um combustível para aquele homem criar, uma fagulha que faz com que Reynolds invente, mas também rompa com tudo e todos para bancar os desejos de sua mulher e isso está relacionado a esse sentimento que ela proporciona.

Coleção feita e a paixão está ali, como ele se alimentou, por exemplo, nas sessões de fotos promocionais, o casal parece um só. Como aqueles vestidos parecem sob medida para aquela garota, enquanto o homem se derrete por sua própria criação. Talvez aí esteja esse maior indício de que se está diante dessa trama sobre um relacionamento complexo, todavia o comentário quase metalinguístico é extremamente forte. Paul Thomas Anderson provoca uma indagação sobre esse trabalho artístico tão conectado a um egoísmo em relação ao próximo e como também está totalmente ligado a uma entrega por completa.

Woodcock é um típico autor, assim como Paul Thomas Anderson é e Daniel Day-Leiws também. O que se vê após esse primeiro momento é justamente um ser derrotado, não pelas críticas, mas por um sentimento arrebatador após utilizar todo seu impulso criativo. Daniel Day-Lewis é um ator conhecido por uma entrega exacerbada, que até questiona qual é o limite da preparação de um ator. E ali está ele representando esse homem onde seu processo criativo é mais importante do que qualquer coisa. Alma começa a se sentir excluída desse mundo. Onde artista parece não enxergar mais nada naquela mulher que pode leva-lo a um novo patamar, como se ele já tivesse absorvido tudo que ela pudesse entregar. Não resta mais nada em Alma, os barulhos causados por ela começam a incomodá-lo (e o espectador também), aquela casa parece espremer Alma (e o público também).

Há ali um embate entre esses dois seres, desse egoísmo artístico, e de alguém que busca um afeto que teve em outro momento. Nesse jogo, Alma se estabelece como alguém que busca reafirmar o seu lugar e isso acontece de duas maneiras bem peculiares. A primeira através da compreensão justamente desse senso artístico, em determinado momento ao dizer que certa pessoa não é digna de vestir um Woodcock, por aquilo representar mais do que uma roupa, por ser o próprio Reynolds. E a segunda é entender como esse processo artístico abre brechas que deixam seres vulneráveis e é ali que ela pode sorrateiramente deixar sua marca, como algo que pouco a pouco vai deixando aquele ser conectado a ela. Uma forma de atar, alguém tão amarrado a suas próprias perfeições e convicções.

Aqueles dois são seres que nutrem uma simbiose onde cada um assume em diferentes momentos o posto de parasita. E quando um está suficientemente alimentado é a vez do outro expurgar por completo a energia de seu companheiro. A obra de Paul Thomas Anderson sempre trouxe personagens que nutriam uma relação imprescindível com alguém, numa relação de total dependência, como Syd e seu pupilo de jogos de azar em Jogada de Risco (1996), o diretor de cinema pornô e sua nova estrela em Boogie Nights (1997), nas diversas histórias de Magnólia (1999), no romance de Embriagados de Amor (2002), na relação entre o explorador de Petróleo e o pastor da cidadezinha americana em Sangue Negro (2007), na relação entre fiel e um novo profeta em O Mestre (2012) e também na busca insaciável de um detetive por sua ex-namorada sumida em Vício Inerente (2014).

Essas relações dão um passo muito mais amplo em Trama Fantasma, como há um limite muito claro entre a morte que Alma pode causar em Reynolds e como o amor por completo pode cessar o impulso criativo daquele homem. Há um limite delicado que os dois tentam entender, que os dois tentam jogar, até encontrar o equilíbrio que talvez não seja compreendido por convenções sociais. Talvez esse seja o ponto, como alguém pode frear essa sucção com uma resposta tão letal quanto, como dois indivíduos podem estabelecer um jogo tóxico (ainda que ambos apreciem) e encontre os seus próprios pontos. Alma muitas vezes é retratada como uma vilã enquanto prepara jantares numa cozinha escura, com uma única luz alaranjada. Mas também é vista como uma mocinha indefessa frente a indiferença de seu companheiro frente àquelas paredes pálidas de um casa que também é ateliê.

Nessa relação em que os sentimentos mais profundos são os mais escondidos, na mesma medida em que são eles que ditam a regra do jogo. Algo que causa uma proposital confusão, os dois ali não querem deixar suas armas em evidência e a casa elitizada dos anos 1950 ajuda a manter um padrão para as coisas. As motivações são muito bem escondidas. Aqui não há subtramas claras, nem fatores que evidenciem relevâncias sociais. Alma não será apenas uma mulher de outro nível social, numa casa de alta costura, nem uma vítima de uma agressão. Mas sim uma atriz desse próprio jogo, alguém que se oferece a uma obsessão, mas também provém a sua, retirando algo a mais daquele homem, algo que ele mesmo nunca sentiu. É como se o filme perguntasse realmente o que existe por trás daquelas imagens, por trás daqueles vestidos pomposos, por trás de uma história, por trás de uma simples relação.

O mais interessante é como essa visceralidade é praticamente escondida por quase duas horas e dez de filme. Onde aquele mundo da alta costura contagia a câmera de Paul Thomas Anderson, com seus movimentos extremamente precisos, com composições de quadro precisas e belas, embalando aquele filme num estilo quase art house. Algo extremamente bem planejado, límpido, sem ruído algum, algo que beira o impecável. É nesse mundo que existem personagens totalmente fora dos padrões, que nutrem essa obsessão em seus cernes, que mostram que a essência daquela trama de relacionamento é muito mais complexa. A relação entre o tema e forma é de uma disparidade instigante, enquanto uma beira a perfeição o outro exala violência, provocando um ruído enorme naquele jogo, naquele nuance que existe entre a forma e o conteúdo.

É curioso ver um filme como Trama Fantasma nessa temporada de premiação, é quase um recado dado a todos os concorrentes, como se indagasse quais são seus reais interesses, o que realmente diz seu pensamento conceitual e formal, porque tudo isso é sobre aparências e o que existe além delas. Paul Thomas Anderson faz uma obra instigante, sinuosa e dissimulada nos melhores dos sentidos, uma obra que se diferencia numa produção onde tudo está sempre tão dado, Trama Fantasma é um filme sobre o prazer de esconder o jogo e o prazer de descobrir como revelá-lo.

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