Em certo momento da projeção, quando a protagonista Elisa (Sally Hawks) bola um plano envolvendo a criatura marítima do título com seu vizinho Giles (Richard Jenkins), o homem de meia idade pergunta, “vamos sincronizar nossos relógios como fazem nos filmes?”. Essa última expressão dá o tom a tudo o que representa A Forma da Água, essa pergunta sobre uma busca por aquilo que se faz nos filmes, aquelas imagens que se configuram como a máxima cinematográfica, uma visão de fatos que só podem ser reais na tela de um cinema, que carregam uma beleza e uma realidade próprias desse universo cinematográfico.
Um filme baseado nessa força do cinema não é incomum em 2018, onde o melhor de um cinema pós-moderno baseia-se na reprodução e reapresentação de imagens ícones de toda uma história cinematográfica, como já fazem Tarantino, Paul Thomas Anderson e até mesmo Guillermo Del Toro. A questão é realmente como o cineasta mexicano compreende essas imagens através de uma aura mágica, fazendo com que a força de suas imagens surja de forma fabulesca como um conto que conecta o cinema com a própria realidade. Del Toro sempre foi dono de filmes que se apresentam como fábulas, um conto fantástico que se desenrola como uma metáfora para além-tela, todavia em A Forma da Água ele compreende que a fábula de tempos recentes é o próprio cinema, e a sua força é hoje uma das únicas formas de conectar o real ao fantasioso, fazendo com que um mundo de imaginação afete o mundo real do espectador.
A Forma da Água acompanha a trajetória de Elisa, uma mulher muda que trabalha como faxineira num centro de pesquisas do serviço secreto americano em meados dos anos 1960. Um dia ela descobre que uma criatura aquática é mantida num laboratório sob maus tratos e todo tipo de experiência, a mulher muda começa a se comunicar com a criatura e nutrir uma relação especial por aquele monstro, pensando até mesmo em resgatá-lo. Elisa contará com a ajuda de sua companheira Zelda (Octavia Spencer), seu vizinho já citado, mas terá como empecilho o furioso chefe de segurança, Richard Strickland (Michael Shanon) e a observação misteriosa do cientista Dr. Robert Hoffsteler (Michael Stuhlbarg).
Essa breve explanação sobre o que se trata A Forma da Água leva a uma conclusão bastante assertiva sobre qual é esse cinema que Del Toro busca se referenciar e reconstituir para construir sua fábula. A Forma da Água baseia-se nas fórmulas e imagens primordiais do cinema de gênero, do horror e da ficção científica, dos títulos B dos estúdios Hollywoodianos que abriam as sessões de filmes grandiosos, cinema que contava com a liberdade criativa e uma expressão muito mais curiosa que os blockbusters da época. Aqui se vê o laboratório escondido no subterrâneo, os cientistas, o bravo e corajoso militar sem medo da criatura que está ali, o contexto da Guerra Fria (marcando a constante ameaça de espionagem), o monstro milimetricamente construído. Todavia, Del Toro elege uma mulher faxineira como a narradora dessa história, promovendo uma reconfiguração nesse mundo já bastante conhecido.
O que se vê em A Forma da Água é todo um gênero sendo trabalhado através de uma visão que nunca se teve. Como se o filme reapresentasse tudo por uma outra perspectiva, talvez os monstros que matam aos montes pudessem, na verdade, mostrar uma outra faceta. Talvez o herói na verdade fosse apenas um mau caráter brutal que não sabe usar nada além da força. Talvez o espião soviético tivesse melhores intenções que os militares americanos e assim por diante. E tudo isso é muito relevante quando se percebe que o filme é visto pelo ponto de vista feminino, que quase nunca tem voz num filme de gênero, a não ser claro, quando é apenas uma garota indefesa pronta para morrer.
Del Toro se aproveita desses clichês para reverter conceitos, utilizando muito bem as imagens dos próprios personagens. É capaz se enganar com o que representa o personagem de Michael Shanon, e se aquele militar um dia foi sinônimo de heroísmo, hoje com apenas uma cena identifica-se a maldade naquele ser. Com isso, evidencia-se que A Forma da Água é um filme sobre a mudança, uma obra que em sua narrativa fantasiosa revela a transformação no curso das coisas. Essa inversão de clichês e estereótipos mostra como nos anos 1960 o mundo pedia por mudança, assim como hoje ela é visível. Os rádios e a televisão mostram a força de um movimento negro que pede seus direitos, nas ruas ainda evitam que eles se sentem no balcão de uma loja de tortas; Giles é um senhor gay que nunca pode demonstrar seus desejos e quando parece ser retribuído é ultrajado. Em A Forma da Água os bons são aqueles afeitos à mudança, são pessoas que representam uma visão outra de mundo, que pedem por essa nova perspectiva que nunca esteve presente na tela, quem dirá num filme de gênero.
Por isso a figura da mulher sem voz que começa a tracejar seus próprios planos, praticamente apaixonando-se por um monstro marítimo é tão forte. Há uma liberdade em transformar o terror em amor, em virar esse jogo de símbolos e códigos cinematográficos, constituindo um filme onde os sentimentos surgem como um conto de fadas, cercado por uma inocência extremamente particular, fazendo com que o espectador e os outros personagens não questionem nada daquilo. Há essa possibilidade no cinema, essa magia que é capaz de reverter os próprios conceitos, transformando-os de acordo com aquilo que a realidade presente deseja.
Isso tem seu efeito produzido de forma plena por diversos motivos, mas com certeza um deles é atuação de Sally Hawks. A atriz através das emoções que apresenta é responsável por fazer essa ponte entre o discurso fantasioso e sua aproximação com a realidade. A mulher muda faz com que suas emoções sejam transmitidas de uma forma ímpar, os lamentos que surgem através de algum ruído, ou até mesmo a força com que ela reproduz seus sinais visuais, às vezes numa velocidade que demonstra preocupação, ansiedade e raiva; ou na lentidão que se apresentam revelando sua tristeza e seu pesar. É essa entrega que faz com que aquela narrativa ganhe contornos de importância, que a vida de um monstro, ou um romance com ele seja tão importante como qualquer outro drama, há um peso dramático em relação àquilo, a fantasia habita o mesmo patamar da realidade.
Esse é um ponto bastante importante na própria carreira de Del Toro. O cineasta sempre tentou trabalhar essa questão onde a fantasia é parte inerente da realidade, como essas duas dimensões estão eternamente ligadas. Aqui há um momento muito significativo nessa condição, quando a criatura é tirada daquele laboratório pela sua companheira, como se o filme mostrasse que a fantasia sai de seu lugar pré-determinado para ocupar uma outra forma de se expressar, o local onde vemos um monstro como aquele num filme de ficção científica se perde, o fantástico agora está nas ruas, na casa de uma moça e por isso pode mostrar outras emoções não somente o terror. A Forma da Água é um passo a mais para o cinema fantástico, não ficando preso às convenções de seu gênero, mas ganhando nuances que os puristas e os detratores do cinema de terror nunca imaginariam, o Oscar e sua consagração é apenas o sintoma disso. O fantástico pode sim habitar o mesmo grau de importância do que um drama histórico, por exemplo.
É bem verdade que em anos dessa postura de Del Toro em seu trabalho, esse seja um filme extremamente calculado para a consagração. A Forma da Água é o filme mais certinho e correto do cineasta mexicano, aquele que menos se abre ao terror, com um roteiro extremamente bem amarrado, criando sequências bastante agradáveis com o uso do humor e do musical que aliviam a história de monstro. Se A Espinha do Diabo, Cronos e O Labirinto do Fauno eram filmes mais fortes, viscerais e violentos mesmo sendo fábulas, A Forma da Água é um filme mais brando. O longa é realizado para ser recebido pelo público, para ser amado e dialogar com uma ampla plateia, o que faz dele o filme perfeito de Del Toro. Ali tudo se encaixa, como um clássico atual, ainda que não seja o melhor de cineasta. Ao mesmo tempo é bom ver que Del Toro ainda continua fiel a sua visão de cinema de gênero, não deixando que o gore, que o macabro se esvaia por completo, A Forma da Água é um filme de monstro e com ele vem algumas mortes impressionantes.
E mesmo toda essa cartografia do cinema de gênero vem munida de uma expressão cinematográfica única. Até mesmo o tiro de um revólver ecoa no cinema com um som e uma reverberação possíveis apenas dentro de um filme. A Forma Água é uma daquelas obras que faz questão de evidenciar seu artifício, de ser envolta por uma camada, um embrulho de imaginação. Há uma beleza na composição de cada plano, um esmero na direção de arte que faz os anos 1960 colorido com tons de um verde futurista que nem mesmo existia na realidade, num preciosismo fotográfico que não é esteticismo vazio, mas ajuda a construir uma aura em torno de uma história que só podia existir no cinema.
E essa é realmente o recado passado por Del Toro em A Forma da Água. Quando o monstro foge e se abriga no cinema, assistindo a um filme antigo em technicolor, esse é o sentimento transmitido pela obra em questão, esse sentimento de petrificação perante uma imagem cinematográfica, com cor e forma de cinema. Del Toro e seu filme dizem que apenas assim talvez seja possível falar da realidade, apenas aquilo que se vê nos filmes podem realmente transformar a relação entre o espectador e sua verdade. A fantasia funciona dessa forma: uma ponte entre o imaginário e o real, e em 2018, com todos seus problemas, ainda é o cinema (de gênero) que pode fazer essa ponte.