Em 1987, David Mamet estreava na direção com O Jogo de Emoções, uma intrincada trama sobre casas de jogos e como esse mundo poderia ser estimulante. Mamet era o grande roteirista de sua época, vindo do teatro, antes da sua estreia na direção já havia escrito os sucessos O Destino Bate à sua Porta (1981), O Veredicto (1982) e o clássico Os Intocáveis (1987), sendo um dos grandes nomes de Hollywood. Muitos anos depois é outro roteirista renomado que estreia na direção. Em A Grande Jogada, Aaron Sorkin chega ao seu debute comandando por completo um longa-metragem.
Tanto Sorkin quanto Mamet foram e são especialistas em criarem estratégias para envolverem e manipularem pessoas para se entregarem emocionalmente e psicologicamente por completo a uma narrativa. Não é à toa que ambos tenham escolhido os jogos, principalmente o pôquer e suas artimanhas para estrearem seu trabalho autoral. Fato é que nessa comparação de estreia dos dois roteiristas há uma diferença muito grande que faz A Grande Jogada habitar um patamar de pretensão um pouco maior, mas que se nota uma incompreensão justamente daquele que mais parece entender do ofício.
A Grande Jogada conta a história de Molly Bloom, uma ex-atleta de esqui que ainda jovem tem uma grave contusão, partindo para uma nova vida, ela descobre na costa Oeste americana o excitante meio dos jogos de pôquer, quase clandestinos, habitado por figurões como artistas de cinema, empreendedores, empresários e homens cheios de dinheiro. Logo Moly vê naquele mundo a possibilidade de vencer no jogo e tomar conta de todos aqueles homens poderosos. A questão é que isso só poderia chamar atenção da polícia e o filme é contado justamente através das lembranças de Molly nos diversos encontros que tem com seu advogado.
Assim, é interessante ver o pôquer e a história de Bloom como a escolha para estreia de Sorkin na direção. Uma obra sustentada nos pilares daquele jogo de cartas, que tem como objetivo levar o oponente a acreditar que ele tem sempre uma mão pior, um jogo que provavelmente fará ele perder todas suas fichas, ou acreditar que aquele jogo é suficientemente poderoso para vencer a sua mão e assim mais uma vez perder aquelas fichas. Trata-se sobretudo de um jogo psicológico, de envolvimento, de levar o outro a acreditar e comprar aquela narrativa. Não é à toa que tanto Mamet quanto Sorkin se deliciam com esse jogo, pois é a mesma base de um bom roteiro, uma série de artifícios para manter aquela audiência presa no que se conta, não importa quanto irreal e inverossímil aquilo possa vir a ser.
A grande questão é que o filme de Mamet é um claro elogio ao artifício narrativa, onde cada virada no roteiro pontua como aquela narrativa pode na verdade tirar o chão daquilo que o espectador acreditou. Um jogo intelectual onde roteirista tem o prazer em estar um passo a frente de seu espectador. No caso de A Grande Jogada, o que está em jogo não é um comentário sobre a própria condição do roteiro e seus artifícios, nem sobre a relação entre a manipulação do jogo e de um próprio filme, mas é como esse envolvimento pode estar ligado a uma jornada hegemônica, de uma volta por cima, uma narrativa edificante, onde a personagem encontraria redenção. O blefe do jogo não combina com o tom edificante que aquela narrativa propõe.
Assim como os outros roteiros famosos de Sorkin, há uma relação conflitante entre o que se faz na vida profissional e aquilo que se vê no âmbito privado. Seja a história de um homem que cria uma rede para conectar pessoas, mas perde todos seus amigos nesse processo (A Rede Social, 2010); ou um homem que entende perfeitamente as demandas de um público sedento por inovações tecnológicas, mas não consegue atender as necessidades mais simples de sua filha (Steve Jobs, 2015). Aqui a tônica é dada nesse mundo underground, onde aquela mulher consegue domar através do vício aqueles homens poderosos, quando por outro lado nunca teve domínio de seus próprios percursos.
Fato é que claramente Sorkin tem muito mais interesse naquele primeiro ponto. É perceptível como o cineasta fascina-se por aquele mundo de manipulações. A cada cena nas mesas de pôquer (e são várias), o longa tem a necessidade de fazer uma dezena de explicações sobre o jogo, estratégias e afins. Não são só as inúmeras falas em off que incomodam nesses momentos, mas as diversas informações visuais que surgem na tela, como números, contas, intervenções visuais, letreiros e até mesmo imagens conectadas com aquilo que se diz, realizando dentro do filme algo muito mais próximo a uma linguagem de internet. Ao que tudo indica o longa parece crer que a eficiência ou importância narrativa provém justamente desse excesso de informação, desse aparente mundo difícil de entender, que o espectador deve se desdobrar para compreender.
A Grande Jogada com certeza é um elogio sobre a complexidade daquele jogo, mas isso não significa que o longa seja complexo, muito pelo contrário. É difícil realmente ver em cena a diferença que todas as informações resultam no drama e nas emoções daquela protagonista. Sorkin dedica tanto tempo às cartas, que esquece praticamente de como aquilo resulta na personagem que o espectador agora tem contato, uma vez que o longa é narrado depois de tudo aquilo já ter acontecido. Chega até ser curioso notar como o longa apela para os artifícios mais frágeis para resolver essa falta de envolvimento emocional com Molly.
Sorkin, habilidoso roteirista, faz uma série de diálogos expositivos (além daqueles necessários e entediantes para fazer a audiência compreender o jogo), em algumas cenas Molly conta tudo o que sentiu, como deveria ter reagido, sendo que nada daquilo foi visto. Sorkin apela até mesmo para uma narração em off cheia de frases de efeito, que tentam conduzir pela mão as sensações dos espectadores, como “ali eu já estava imersa em escuridão”, algo que realmente não é sentido naquela narrativa. Além de tudo isso, todos os conflitos são resolvidos através de coincidências, de coisas que simplesmente surgem para explicar tudo, ou solucionar os problemas judiciais. Como o encontro com o pai, que em um único diálogo resolve todos os traumas daquela mulher e soluciona todos os problemas de ordem pessoal, coisas que mal tinham aparecido nos longos 140 minutos de filme.
Realmente a única coisa que cessa o descompensado jogo entre problemas pessoais mal resolvidos e as mesas de pôquer com excesso de informação é a atuação dos atores centrais de A Grande Jogada. Tanto Jessica Chastain quanto Idris Elba fazem a câmera e a edição propostas por Sorkin serem acalmadas. Ali há realmente um confronto de ideias, entre uma mulher tentando sair de um mundo arruinado e um homem que tenta entender um possível processo de saída, e desse embate, é onde sai uma nova Molly Bloom. Se o filme é para Chastain, e cada ambiente mostra uma força entre a personagem e interprete, é realmente nessa quase disputa com Idris Elba que ela reforça suas melhores qualidades. Um força na fala até mesmo quando está indecisa, uma motivação que poucos parecem ter e ele praticamente tentando analisar tudo sobre aquela mulher e o que ela pode vir a ser.
Esse ponto realmente é esmagado por tudo aquilo que o filme tenta ser. Mesmo com um material humano tão forte e tão potente, Sorkins prefere as informações excessivas do pôquer e os apressados desenvolvimentos no âmbito pessoal daquela personagem. Talvez cacoetes de um roteirista, que pode muito bem ter caído num blefe, numa crença que sabe todos os artifício narrativos, todas as formas de colocar um espectador numa trama, mesmo que duas dimensões daquela narrativa não combinem tão bem. Aaron Sorkin não desaprendeu tudo que sabe, e suas masterclass ainda são bem vindas para quem gosta de cinema e roteiro, mas como no jogo nem sempre é fácil compreender todos os caminhos de uma narrativa, nem mesmo para Sorkin.