Alguns personagens conseguem se desconectar de uma única obra, são seres que se tornam universais, não pertencendo a um livro ou a um filme, mas sim figuras arquetípicas, que transcendem gerações, sendo verdadeiros mitos ou lendas – e com certeza Tarzan é um exemplo disso. O herói foi criado em 1912 por Edgar Rice Burroughs, ganhando dezenas de livros, diversos quadrinhos e desde 1918 é adaptado para o cinema. Tarzan é com certeza um mito dos tempos modernos.
Em 2016, o diretor David Yates traz mais uma versão da lenda e aproveitando muito bem tudo o que o personagem já representa. A Lenda de Tarzan foca num momento posterior ao que costuma ser retratado, o longa acompanha o retorno do Lord Greystoke a suas origens primatas, conta o retorno de John Clayto III à figura de Tarzan, um homem que foi civilizado, que assume suas obrigações sociais, mas o chamado, em forma de emboscada num primeiro momento, faz com que volte a ser herói, volte a ser lenda. É assim que A Lenda de Tarzan consegue tratar de temas como esta dimensão mítica do personagem e o momento histórico que Tarzan se insere sem esquecer de que não deixa de ser uma grande aventura.
A Lenda de Tarzan faz um caminho extremamente interessante: o longa não é uma jornada do herói, mas sim um retorno a este posto. Tarzan (Alexander Skarsgard) é retratado como um homem que quer se livrar das lendas e das histórias que o cercam, alguém que quer ser reconhecido por atos que possam ser feitos trajando terno e gravata. Assim o que se vê na tela é uma jornada de retorno a essa condição de herói, a essa dimensão de lenda.
Tarzan volta ao Congo no que seria uma missão diplomática, mas na verdade se trata de um plano do vilão Leon Rom que pretende trocar o herói por pedras preciosas a fim de enriquecer, negociando com o líder de uma tribo local. Tarzan vê sua esposa e seu povo ameaçados, John volta a ser Tarzan, o homem volta a ser um mito, não há forma alguma de abdicar característica tão homérica como esta. Em um momento do filme, Jane (Margot Robbie) solta um grito de ódio/desespero quando um gorila sofre um tiro de um homem, o berro da personagem ecoa pela floresta e atinge os ouvidos de Tarzan, o momento é apoteótico e representa perfeitamente que o personagem assume, assim como o filme, que aquele não é um ser humano, mas sim um herói, quase um semideus, alguém que está acima de homens e animais, e entender essa condição totalmente heroica faz parte do deleite deste A Lenda de Tarzan.
E se a descrição acima faz com que o filme pareça uma obra extremamente fantasiosa, David Yates adota recursos totalmente válidos que fujam de cair num filme nonsense. O diretor adota um realismo estético e narrativo imponente em que todos os atos têm peso em cena, não se deixando levar por uma tendência contemporânea de diluir os conflitos da trama com humor e ironia. A Lenda de Tarzan sabe exatamente o quanto vale dramaticamente um soco, uma luta ou um tiro e tira proveito disso, o que faz com que todos os atos sejam de fato importante, que geram consequências e o público sente isso.
Parecendo uma grande incoerência, Yates consegue combinar de maneira perfeita a característica fantástica com este realismo, o Tarzan que voa como um espírito pela floresta é extremamente crível naquela região que vive sob ameaça constante de uma guerra civil alimentada por governos europeus. Além de coeso, o cineasta demonstra um grande apuro visual, junto com a fotografia de Henry Braham que filma as dependências do Congo com extrema delicadeza utilizando o sol e a neblina do local para criarem planos muito expressivos e belos, ajudando a dar uma dimensão ainda mais heroica e romântica àquela jornada. Bem verdade que o cineasta muitas vezes cai em alguns exageros técnicos e estéticos com o excesso do slow motion e principalmente numa crença no papel do CGi, com efeitos que por buscarem um extremo realismo mostram-se falhos e principalmente pouco interessante esteticamente. Ainda assim, A Lenda de Tarzan é um filme que visualmente está acima da média em relação a seus blockbusters contemporâneos.
O realismo adotado por David Yates concede ao longa uma dimensão histórica. Tarzan é um personagem totalmente ligado ao neo-imperialismo e A Lenda de Tarzan não fecha os olhos para tais questões. A partilha dos territórios africanos foi algo desumano, unindo tribos rivais e desconsiderando qualquer histórico, o personagem sempre foi o contraponto dessa colonização, sendo um homem europeu que em comunhão com a natureza, longe das amarras sociais torna-se um ser bom, quase uma materialização do Bom Selvagem. Neste retorno, o longa não assume um discurso menos consciente, Tarzan não volta como o branco para civilizar, mas sim como a figura nativa que volta para liderar e unificar um mesmo povo contra figura de um invasor que não traz uma missão de paz, mas sim busca uma exploração sem fim. E é interessante notar como o longa não adota um maniqueísmo cego.
Jane neste filme é apresentada como uma personagem que, assim como Tarzan, cresceu naquela região; enquanto ele fora criado pelos gorilas no meio da mata, ela viveu no meio de uma tribo nativa enquanto seu pai dava aulas nos locais. Outro que traz essa consciência da exploração é Willams (Samuel L. Jackson), um americano que participou da sangrenta expansão ao Oeste na América do Norte e que busca nesse auxílio à missão de Tarzan sua própria redenção. No momento mais marcante do longa, e talvez de 2016, o herói lidera uma resistência que a fauna e as tribos locais expulsam aqueles exploradores da região, uma manda comanda por nativos que destrói a cidade feita pelos Belgas e une um país, o ato mais heroico é também um reparo histórico através do cinema.
Se esses aspectos fazem com que A Lenda de Tarzan pareça sério demais, é admirável como o filme consegue ser além de tudo uma grande aventura, talvez uma das melhores do ano, tendo ao longo da obra um tom agradável que balanceie o seu realismo. Em certo momento, Tarzan e seus companheiros precisam entrar num trem em movimento, os heróis saltam de uma enorme árvore, voando pelos cipós e realizando um assalto que lembra o melhor do faroeste, referência essencial para qualquer aventura que se preze.
Verdade seja dita: A Lenda de Tarzan não é um filme perfeito, muitas vezes explicando o que já estava mais do que evidente, num uso constante de flashbacks desnecessários e até de certa verborragia. Outro ponto que chega a ser engraçado notar é como Christopher Waltz e o próprio Samuel L. Jackson constroem seus personagens baseados nas figuras vistas nos longas de Quentin Tarantino. Waltz como o vilão Leon Rom é uma espécie de Hans Landa neo-colonialista e Jackson pode muito bem ter saído de Os Oito Odiados. A Lenda de Tarzan está muito mais interessado nas personas desses atores do que em novos personagens.
Mas se nem em todo aspecto A Lenda de Tarzan consegue ser original, é bastante interessante ver um projeto que assume o risco de dar uma nova abordagem a um mito tão conhecido. O longa consegue ser uma grande aventura, sem deixar de ser consciente, apostando num realismo, sem deixar de ser imaginativo. Acima de tudo, o filme de David Yates faz jus ao mito de Tarzan.