Críticas

Crítica | A Odisseia

O longa A Odisseia baseia-se inteiramente na figura de um homem, de um ícone da cultura ocidental, que pode até não ser falado hoje da mesma forma que era no passado, mas mesmo assim tem um valor e um legado inegáveis numa produção específica, algo que o constitui como essa lenda. Jacques Cousteau é essa figura, o famoso explorador e oceanógrafo que popularizou o documentário natural, especialmente sobre oceanos e suas profundezas. Tudo então no filme deve girar em torno desse homem, buscar entender como transformou uma devoção sua num maravilhamento coletivo, dando até mesmo uma Palma de Ouro a Louis Malle por seu Mundo Silencioso na década 1950.

Existem diversos filmes nesse sentido, onde uma só figura centraliza todas as ações vistas na narrativa, como se tudo no aparato ficcional orbitasse um único homem. A grande questão é que essa não é uma tarefa fácil, algo pensado por muitos realizadores e suas respectivas obras, basta reparar a quantidade de biografias que surgem aos montes nos circuitos comerciais. Há um entendimento que basta esse retratado despertar o interesse do público que o jogo está ganho, que as bases da ficção estão suficientemente bem colocadas, quando na verdade apenas um personagem, por mais interessante que ele possa ser fora das telas, não sustenta um longa com duas horas de duração.

O filme então parte de uma linha narrativa bem clara, que é passar por todos os momentos significantes na carreira de Cousteau, redramatizar pontos fundamentais na trajetória de um homem que transformou seu Hobby num grande império de influência. É interessante perceber como o longa dirigido e escrito por Jérôme Salle estabelece um parâmetro de fora para dentro nesse retrato, a busca do filme nunca é revelar motivações internas desse personagem, mas satisfazer o público sobre aquilo que já se viu sobre aquele explorador, ou ainda atualizar o mito em torno daquele homem. Assim, o filme tenta reconstituir uma nova imagem, pintada através do que já se viu sobre ele, daquilo que uma rápida pesquisa no Google revelaria.

Dessa forma, a linha narrativa vai saltando de momento importantes da carreira daquele homem, como se uma fosse igualmente importante do que a outra. O público vê Cousteau desenvolvendo um respirador subaquático, depois decidindo partir para uma jornada rumo a um oceano distante, lutando para conseguir seu barco, levando seus projetos para a televisão e assim por diante. O filme vai pulando para essas imagens que sempre consagram a figura de Cousteau, como se fosse um livro ilustrado das grandes façanhas daquele homem.

Essa linha narrativa é costurada apenas por esses momentos de sucesso, onde o que se vê não estabelece necessariamente uma relação de causa e consequência com o que se vê a seguir. É curioso como nessa colagem ilustrativa o drama dessas sequências é totalmente suprimido. As revelações em determinadas sequências, como as brigas com o filho mais novo, os problemas com o casamento, não desestabilizam os planos narrativos do longa, que segue para mais um ponto em que Cousteau deve provar seu sucesso. As elipses, que amarram mais de 40 anos, servem para amenizar a força desses pontos dramáticos, fazendo com que eles sejam apenas mais uma informação, algo que não muda em nada curso das coisas. Sobra apenas um bem feito jogo de montagem que consegue conectar saltos temporais tão grandes.

Nesse fascínio por sua figura principal esse esquema é decorrência de dois problemas dentro de A Odisseia. O primeiro é desejar colocar quase todos os acontecimentos da carreira daquele homem dentro do filme, passando por tudo, não deixando nada de fora, o que ocorre é que sem um recorte específico, nada realmente ganha uma importância, nada do que se vê é de fato modificador ou relevante, há uma predileção pela informação fácil em detrimento do drama. A outra é de forma proposital evitar que os fatos que poderiam ser dramáticos não afetem seu protagonista, evitando alguma sujeira na imagem daquele homem real, assim a montagem elíptica ameniza a força dos acontecimentos. É curioso como o filme começa com um fato importante na vida daquele homem, um acidente de avião pilotado por ele, e isso serve só para pontuar alguns momentos da narrativa, para amarrar a história, conectando-se com o único momento dramático do filme, já nos acréscimos do segundo tempo, uma vez que o longa se preocupou e distanciou-se do drama no restante da obra.

A Odisseia assim não consegue manter-se durante seus 122 minutos de projeção. Apesar do seu ótimo aparato técnico, da sua reconstituição de época, e até mesmo do bom desempenho de seus atores, fiéis aos seus personagens e até mesmo procurando um drama que o filme não tem. Lambert Wilson e Audrey Tatou são firmes e competentes ao manterem sempre uma mesma postura, numa representação muito coerente com o casal Costeau, Tatou até mesmo clama para que o drama de sua personagem, cansada a viver à sombra das loucuras do marido, seja evidenciado pelo filme. O destaque também vai para Pierre Niney, o filho do explorador, que se sai bem como mais do que um menino mimado, entre a devoção ao pai e uma constante rivalidade, algo que também não pode ser desenvolvido devido a pressa do longa.

No final sobra um filme totalmente ilustrativo, com algumas belas imagens que remetem ao maravilhamento daquele homem e do ambiente aquático, algo que se traduz em boas ideias visuais do diretor Salle como a reprodução dos planos realizados por Malle, ou como a vida no mar sempre parece mais brilhante, colorida e iluminada, filmada com afeto em engenhosos planos sequências. Mas isso é insuficiente para contornar a falta de drama, para evitar apenas a informação acerca de uma figura já conhecida, as elipses que saltam anos e anos sem evidenciar o que realmente o filme quer dizer, apostando apenas na figura de um homem fundamental no imaginário ocidental anos atrás.

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