Críticas

Crítica | A Qualquer Custo

Seria extremamente pobre ler o filme A Qualquer Custo como uma simples repetição de signos e convenções do cinema americano, principalmente do faroeste e suas diversas variações. O filme de David Mackenzie é muito mais do que isso, é a recuperação de toda uma tradição fílmica para atualizá-la através de um pensamento extremamente contemporâneo, fazendo de A Qualquer Custo um faroeste totalmente pós-moderno.

O western é por excelência o gênero mais americano e consequentemente carrega consigo uma gama de referências e explicações – mesmo que de maneira não proposital – sobre os Estados Unidos. Mackenzie e o roteirista Taylor Sheridan (responsável pelo texto do ótimo Sicario) entendem perfeitamente essa característica. Dessa forma, A Qualquer Custo se utiliza de todos os signos e símbolos para fazer mais do que um faroeste atualizado, mas sim uma crônica sócio-política através de um gênero extremamente conhecido.

Sendo assim, a narrativa de A Qualquer Custo utiliza-se de tudo que já é conhecido do faroeste para se validar e se atualizar. A história acompanha uma dupla de bandidos, aqui dois irmãos Tanner e Toby Howard (Ben Foster e Chris Pine respectivamente), que cruzam o oeste do país assaltando pequenos bancos, a fim de pagar uma dívida de Toby. No entanto, os dois foras da lei passam a ser perseguidos por Marcus Hamilton interpretado por Jeff Bridges, um xerife prestes a se aposentar que leva essa como sua última missão.

Dessa forma, o filme contém a figura da dupla de criminosos com total apelo em relação ao público, Tanner e Toby são como Butch Cassady e Sundance Kid ou um Bonnie e Clyde com laços sanguíneos. Homens que subvertem a lei numa condição muito mais marginal, de andar contra o sistema, do que necessariamente maligna. Nesse Road Movie de assaltos no oeste americano, Tanner e Toby são anti-heróis que derivam de um pensamento digno da Nova Hollywood. Personagens moralmente ambíguos que se utilizam de meios questionáveis para chegarem a seu objetivo, nessa imperfeição sobra humanidade à dupla de protagonistas de A Qualquer Custo.

O mais interessante no longa de Mackenzie é que isso ocorre do outro lado também, através da impressionante figura de Hamilton. Assim como os dois protagonistas, o xerife também prende o público, e isso ocorre, pois o filme faz com que se compreenda o pensamento daquele homem. Hamilton é um xerife crepuscular, indivíduo já em suas derradeiras missões e que não compreende os rumos que sua terra tem tomado. Jeff Bridges encarna um arquétipo já interpretado por Gary Cooper em Matar ou Morrer (1952), por John Wayne em Onde Começa o Inferno (1959) e por Tommy Lee Jones em Onde os Fracos Não Tem Vez (2007). Sujeitos de um velho oeste que lutam com as armas que tem para manter um tipo de tradição moral, ainda que esta seja igualmente questionável.

Com isso, A Qualquer Custo constrói dois pontos de vista para o mesmo local e para as mesmas situações, fazendo um duplo retrato do meio oeste contemporâneo. O primeiro transgressor através dos olhos dos dois irmãos, nesse registro há apenas um senso de sobrevivência naquele lugar que nunca lhes ofereceu nada, como se fossem apenas andarilhos em busca de algumas migalhas em meio a uma série de escombros. Por outro lado, Hamilton é um olhar da tradição, alguém que preza pelo resgate de um passado já dissipado, homem que habitava instituições que agora são apenas ruínas.

Dessa maneira, o filme é um texto em forma de crônica acerca daqueles locais por onde os personagens principais transitam. De forma hábil e sutil, Mackenzie faz um retrato daquela região dos EUA pós-crise de 2008, local tomado de todas as formas pela especulação financeira. Se antes era a estrada de ferro que representava perigo progressista nas comunidades do oeste, agora há a constatação que a bolha financeira praticamente acabou com aquele mesmo lugar. Nesse sentido, é interessante como o filme é bastante crítico em todos os aspectos, não sendo um mero faroeste. Em um momento, Hamilton reclama para um companheiro de origem indígena que os bancos tomaram tudo o que as pessoas haviam construídos ali na região; seu amigo logo retruca, dizendo que aquelas pessoas já haviam roubado essas terras de uma centena de indígenas. Simples e rápido momento que revela um esfacelamento moral por completo daquele lugar, que não havia virtude nem mesmo nas suas tradições.

Sendo assim, é interessante como A Qualquer Custo constrói um paralelo entre a imagem enraizada que se tem do faroeste e a sua nova representação. No último terço do filme é como se os irmãos Howards estivessem numa cidade do Oeste no fim do século retrasado, com todos os cidadãos perseguindo os marginais, apenas trocando os cavalos por potentes SUV, e os revolver por poderosos rifles. No auge climático do longa, em que Mackenzie demonstra toda sua habilidade em criar um filme tenso e ágil sem deixar de ser consciente, A Qualquer Custo realiza dois momentos de extremo anti-maniqueísmo, a primeira na espécie de confronto final entre Hamilton e Tanner e depois na conversa banal entre o mesmo xerfie e Toby. Não existe ponto moral em A Qualquer custo, fato que deixa a relação entre mocinhos e bandidos (se é que eles existem) muito mais honesta.

Se o filme de David Mackenzie é um faroeste moderno exemplar, engana-se quem enxerga em A Qualquer Custo uma simples repetição de clichês do gênero. O filme consegue, na verdade, transcrever pensamentos extremamente contemporâneos através das fórmulas desse gênero americano por excelência. A Qualquer Custo moderniza o faroeste em muitos sentidos, e entra para aquele grupo de pequenos grandes filmes.

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