Críticas

Crítica | Além da Ilusão

Além da Ilusão começa com uma cena em que as irmãs Laura Barlow (Natalie Portman) e Kate Barlow (Lily-Rose Depp) se apresentam num vaudeville, uma espécie de teatro de variedades que reunia diversas atrações, dança, música, can-can e fatos extraordinários. As duas protagonistas comandam um show mediúnico, onde a mais nova delas conecta-se com entes já falecidos dos espectadores, as duas conectam a audiência a um outro plano de realidade, convidando-os a uma viagem a um mundo não visível, produzido por Kate, narrado por Laura. No final do show, um produtor de cinema convida-as para uma série de experiências na tela grande, Laura como atriz e Kate numa filmagem para comprovar a veracidade de seus talentos.

Esse início, além de verossímil, não é nem um pouco gratuito. Os vaudevilles foram responsáveis por programarem as primeiras sessões de cinema, se é que podemos chamar assim. Lá exibiam os pequenos filmes realizados com o cinematógrafo criados pelos irmãos Lumières, essa atração acabou ficando tão grande que acabou ganhando um espaço exclusivo para si, o cinema. Além da Ilusão é um filme totalmente conectado com a ideia de fazer e de pensar cinema. um cinema de transporte que conecta realidade com um mundo outro, da imaginação, regido por leis particulares, que no final modifica, nem que seja minimamente, aquela realidade primeira.

A trajetória das irmãs vai sendo contada paralelamente, enquanto Laura entra no mundo do cinema, recheado de amores, interpretações e glamour. Do outro lado, Kate é cada vez mais obrigada a participar de sessões onde mostra seu dom para fins de pesquisa, mas também para o prazer daquele produtor. O filme de Rebecca Zlotowski propõe, assim, uma espécie de três dimensões de uma realidade projetada, construída: o cinema, essa outra dimensão mediúnica e a vida de convenções das estrelas cinematográficas, todas elas com um alto grau de insinuações, de dúvidas, de narrativas com a finalidade levar uma pessoa a acreditar numa outra verdade.

A grande chave de Além da Ilusão é a consciência de que o importante não é desvendar se alguma daquelas narrativas são falsas, mas sim o que elas podem gerar em seus espectadores. É por isso que o filme tenta abordar uma série de temas dentro daquele constante jogo de encenações, da sexualidade à política. O que, no final, revela-se como uma obsessão por parte de todos os personagens neste mundo ilusório, em que a constante encenação leva a uma derrocada total, como se os sonhos fossem uma substância que deve ser consumida com extrema moderação.

Um dos paralelos mais interessantes presente no filme é a relação entre a sexualidade e esses dois meios de ilusão. Tanto cinema, quanto os sonhos (aqui representado pelo processo mediúnico de Kate), fazem com que os personagens liberem cargas libidinosas repreendidas socialmente – o filme se passa na década de 1930, onde o sexo era um grande tabu. Isso se materializa extremamente bem na figura do produtor de cinema, um homem que utiliza as sessões de Kate para conectar-se com alguém que lhe dava prazer, fazendo com que o personagem tenha uma espécie de relação sexual com o além, utilizando o dom da garota como um meio para este fim. De outro lado, Laura descobre que aquele homem já fizera uma série de filmes pornográficos, registrando diversas relações sexuais, muitas vezes contendo ele mesmo em cena. Ou seja, as duas narrativas, que podem ser ilusórias, são utilizadas pelo personagem como se fossem canais para seus desejos reprimidos. As narrativas fazem com que seja capaz do homem materializar seus anseios.

Além da Ilusão é um filme que faz do cinema um sonho e um sonho o cinema. Narrativas ilusórias recheadas de artifícios para que os fatos contados (através de imagens) não sejam questionados pela sua audiência. Nesse sentido, a diretora faz um filme que preza por uma mise-en-scène da excelência, da inquestionabilidade, desde seu rigor estético muito evidente – cada composição de quadro é muito bem planejada, muito bem elaborada e bem iluminada, ainda que bastante simples – até a utilização de alguns artifícios utilizados pelos primeiros cineastas – como um céu estrelado que parece ter sido feito através de uma folha de papel recheada de perfurações iluminadas por alguma luz, dando a sensação da noite cheia de estrelas.

Essa encenação faz com que nada ali seja questionado, tudo o que é posto torna-se uma viagem a um outro mundo para o espectador. Mesmo quando o filme faz sua inserção num sonho de um personagem, representando visualmente o que ele sonhou, não há um questionamento do que se vê, justamente pela direção de Zlotowski, que torna o onírico imperceptível. O trabalho bem feito da diretora reflete nas atuações das duas atrizes principais, a experiente Natalie Portman, carregando seu personagem nos mínimos detalhes sem que seja necessário chamar atenção para si – como num momento que com um único e rápido suspiro compreende-se o prazer sentido pela moça; e também a explosiva atuação de Depp, intensa, mostrando como estar nesse mundo de ilusão constantemente pode se tornar um caos.

Além da Ilusão, assim como os sonhos que retrata, é um filme extremamente intenso, cheio de ideias e colocações, o mundo dos sonhos leva, muitas vezes, a uma obsessão, a um viciante mundo onírico com regras particulares, impossibilitando uma reorganização do mundo real. O longa, nesse projeto, afoga-se nos assuntos que levanta, como se não conseguisse concluir tudo aquilo que fala, tornando-se um tanto quanto inconclusivo, deixando a concisão de lado por maravilhar-se com o mundo que retrata.

O longa, dessa forma, é uma daquelas obras que chama atenção por tudo que propõem, pelos temas que aborda e também pelas propostas estéticas construídas a partir disso. A viagem ao mundo de eterna encenação construída por Rebecca Zlotowski é contagiante, entusiasmante e muitas vezes bastante interessante, a questão é que a passagem de volta para o mundo real nunca é entregue.

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